6.7.20

Verdes são os recibos: como a covid 19 infetou a vida dos trabalhadores independentes

Texto Tiago Soares, Infografia Carlos Esteves, Ilustração Cristiano Salgado, in Expresso

Sem patrão nem estabilidade: a pandemia afetou tudo e todos, mas foi particularmente severa com os muitos milhares de trabalhadores independentes em Portugal

Miguel Cabral nunca quis ter um emprego das nove às cinco. Estudou cinema, apaixonou-se pelo som, ganha a vida a fazer e a misturar as duas coisas. Os trabalhos que faz trazem-lhe novas terras, pessoas, realidades. Não tem patrões, vai tendo. Este diretor de som e cineasta de 36 anos é um dos muitos milhares de trabalhadores independentes em Portugal. “Quando és pago tens independência financeira durante algumas semanas ou meses.” Depois segue-se o trabalho seguinte. “Mas o trabalho continua enquanto o telefone não toca: ou só para mim, ou de graça, ou para os outros. Apenas os rendimentos são intermitentes, porque o trabalho é constante.”

São dados da Pordata: há 573 mil trabalhadores por conta própria (não empregadores) em Portugal, a que se juntam 273,5 mil trabalhadores por conta própria que também empregam pessoas. Representam cerca de 16,5% da força laboral do país. Na União Europeia há 33 milhões de trabalhadores numa destas categorias.

O último inquérito do Eurostat sobre estes profissionais (2017) mostra que, em Portugal, a esmagadora maioria tem margem de manobra para influenciar o conteúdo das tarefas que fazem. Este padrão repete-se em todos os países da UE. Outro dado da mesma fonte indica que mais de 40% dos inquiridos portugueses são freelancers por duas razões: ou porque é uma “oportunidade” que se enquadra nas suas vidas, ou porque é a prática comum no sector onde trabalham. Mas este cenário esconde um problema, agora amplificado pela pandemia: a precariedade.

“Não sei quando é que vou voltar a trabalhar”, diz. Passou o último recibo verde no início de março, já com muitos dos projetos seguintes cancelados. Tem sobrevivido com uma “almofada” cada vez mais magra, à espera que o audiovisual português desconfine seguindo as orientações da DGS.

Relação distante com a Segurança Social

Hugo Veludo tem 41 anos e já fez um pouco de tudo. Foi professor de inglês durante cinco anos, trabalhou em várias companhias ligadas à cultura, e até à pandemia ter parado o país trabalhava em part-time numa empresa de alojamento local. Além disso, é assistente de sala na Casa da Música, no Porto, e um dos trabalhadores que protestou contra a falta de comunicação e apoio da instituição a alguns prestadores de serviços. O conflito motivou abaixo-assinados, a abertura de um inquérito por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), e a ida da administração ao Parlamento para prestar esclarecimentos. Entretanto, vendo-se quase sem rendimentos, Hugo optou por congelar a renda da casa que aluga com o marido, empresário de alojamento local — um sector “sem reservas há meses”. Estão “a tentar não afundar”, diz.

Desde o início da pandemia que o Ministério do Trabalho e da Segurança Social (MTSS) tem vindo progressivamente a criar, alargar e aprimorar apoios extraordinários para os trabalhadores independentes e sócios-gerentes que viram os seus rendimentos afetados “de forma abrupta e acentuada” pela covid-19. Neste momento, os montantes vão dos 219 aos 635 euros. Os trabalhadores que não descontaram para a Segurança Social no último ano contam com um apoio de 438 euros a partir deste mês de julho (até dezembro).

Ao Expresso, o MTSS adianta que “até ao momento foram pagos apoios a cerca de 173 mil trabalhadores, incluindo cerca de 19 mil sócios-gerentes”. Estes apoios totalizam, para já, 110,4 milhões de euros.

Miguel chama-lhe a sua “infelicidade”: no ano passado ensinou uma cadeira durante um semestre na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, “tive um contrato mínimo”, “não interrompi a carreira contributiva”, “e mesmo assim consideraram que não era um trabalhador independente exclusivo. É a única explicação que encontro [para não ter recebido apoio]”, lamenta. “A minha relação com a Segurança Social resume-se a pouco mais do que essas três palavras: TI não exclusivo. Sempre defendi a Segurança Social, mas a verdade é que estão a afastar-nos da ideia de solidariedade.” No passado dia 19 de junho, a tutela garantiu no Parlamento que o indeferimento de alguns apoios iria ser corrigido, tendo em conta que, “por vezes, os dados não estão atualizados no sistema”.

Daniel Carapau, da associação Precários Inflexíveis, assinala ao Expresso que ainda “há centenas de milhares de pessoas a precisar de ajuda”. “Há trabalhadores que fizeram o pedido e estiveram três meses há espera, para agora receberem uma resposta negativa. ‘Não cumpre os requisitos’ não é resposta que se dê. E também não faz sentido que ter trabalhado por conta de outrem no último ano seja um fator de exclusão, quando a maior parte do rendimento continuava a ser [através de] recibos verdes.”

Por sua vez, nas respostas a este jornal, o MTSS reforça que a SS “tem procurado acelerar a regularização de todos os casos em que se deteta que o trabalhador cumpre os requisitos de acesso ao apoio e continuará a fazê-lo relativamente a todos os pedidos de retificação que sejam apresentados”.

Diogo Allen foi um dos que esteve três meses à espera. No final, este assistente de realização de 30 anos recebeu uma nega, apesar de todos os funcionários da Segurança Social com quem falou “dizerem que cumpria as condições para obter o apoio”. Fez duas reclamações por escrito, espera vir a ter o apoio. “No futuro gostava de ter mais estabilidade económica, em vez de ter pausas de três meses sem trabalho. Porque não desfrutas desse tempo, não são férias, estás sempre à espera que o telefone toque, não gastas dinheiro porque sabes que vais precisar dele. É como se a vida ficasse em suspenso.” Nos últimos meses esgotou as poupanças, mas a namorada, também trabalhadora por conta própria, continuou a trabalhar a partir de casa, e tem assumido as despesas da vida em conjunto.

Problema global

A precariedade não é exclusiva de Portugal. Num artigo publicado em abril no portal de políticas económicas Vox CEPR, Luca Sartorio e Eduardo Levy Yeyati (ministro de produção e trabalho da Argentina, e reitor da Universidade Torcuato Di Tella, respetivamente) alertaram para a necessidade de “um novo regime para os trabalhadores independentes”, que atualmente “são legalmente excluídos, por princípio” das proteções reservadas aos trabalhadores por conta de outrem, tão cruciais para atenuar a crise da covid-19.

Nos países da OCDE os trabalhadores independentes são cerca de 15%, mas nos países da América Latina, por exemplo, esta percentagem mais do que duplica: 50% no Peru e Colômbia, 30% no Brasil e México, 28% no Chile e Uruguai, por exemplo. Isto significa que, “ao contrário dos trabalhadores assalariados formais, os trabalhadores independentes estão totalmente expostos a quebras nos seus rendimentos mensais em tempos calmos, e muito mais em tempos de crise”, sublinham os economistas.

Ora, se esta “dualidade” não for contemplada pelos governos durante esta crise, “as disparidades nos mercados de trabalho irão aprofundar o impacto da covid-19 na pobreza e desigualdade”, “independentemente do tamanho das medidas de proteção do salário”. Os especialistas dão o exemplo de uma reforma aplicada por Portugal — subsídio de desemprego aos trabalhadores de recibos verdes que recebam pelo menos 50% do seu rendimento de uma entidade — como uma das medidas a aplicar.

Há 573 mil trabalhadores por conta própria (não empregadores) em Portugal, a que se juntam 273,5 mil trabalhadores por conta própria que também empregam pessoas. Representam cerca de 16,5% da força laboral do país

Miguel toca neste ponto: “Devíamos ter mais proteção social. Acho que é o problema eterno dos recibos verdes: descontamos muito [para impostos], mas não temos acesso ao subsídio de desemprego a menos que 50% dos nossos rendimentos venham de uma única entidade. Mas muita gente trabalha para várias [entidades]. Isso não significa que o trabalho não exista.” Daniel Carapau lembra ainda que esta falta de proteção atinge trabalhadores de várias áreas, e não apenas sectores mais “flexíveis” como a cultura: arquitetos, formadores do IEFP ou até advogados.

Teresa Aguiar, por exemplo, é arquiteta de formação. Tem 40 anos e sempre foi trabalhadora independente. Exerceu a profissão como freelancer e teve uma empresa durante alguns anos, mas foi sempre conciliando outros trabalhos: até há pouco tempo era prestadora de serviços na área do turismo e também guia na Casa da Música, duas ocupações que a pandemia aniquilou. “Desde março que está a tentar segurar o barco.” Pediu ajuda a familiares, em abril recebeu apoio da SS, mas em maio fez um acordo com o senhorio para pagar apenas parte da renda, ficando o restante diluído pelas mensalidades do próximo ano. “Só serviu para adiar o problema”, admite. “Não sou freelancer por opção, mas sim por condicionamento da realidade laboral portuguesa.”

“Sempre fui trabalhador independente, e por causa disso nunca tive filhos”, lamenta Hugo Veludo. “Quem tem este tipo de trabalhos não são só estudantes universitários. Há muitos adultos que mês após mês têm a vida em suspenso, sem saberem o que vem a seguir.” Esta instabilidade laboral que contamina a vida pessoal é uma das razões para se ter envolvido na “batalha” por mais direitos para si e para alguns dos seus colegas na Casa da Música. Caso não a vença, vai procurar emprego em qualquer área. “O único requisito é ser um rendimento fixo.”