11.5.08

"Vou desistir dos medicamentos, porque o dinheiro este mês já não chega"

Natália Faria, in Jornal Público

Ermelinda não sabe o que é o RSI. Cândida vai deixar de tomar os medicamentos. À Laurinda ajudam-na os filhos a pôr comida na mesa. Rostos da pobreza em Baião


É uma questão de trocar as voltas ao relógio. Se Maria Ermelinda, habitante de Baião, servir o almoço ao marido às três da tarde, os dois já conseguem saltar o jantar sem que o estômago reclame demasiado. "Se a fome aperta, come-se sopa. Se fizermos um bocado de arroz, já não se come fruta, que é para sobrar prà vez seguinte", conta, apoiada numa bengala à porta da sua casa, no lugar de Outoreça.

Dura de ouvido, com uma ferida na perna tratada a Betadine porque ir ao hospital implica gastar dinheiro em táxi, esta mulher de 73 anos nunca ouviu falar de Rendimento Social de Inserção (RSI). "Aqui não sabemos disso, não temos quem nos explique...", desculpa-se. Na rua, montes e silêncio. Velhos e silêncio. No interior da casa, parece noite. "Deus me livre que me pusesse a gastar luz de dia. Quem é que ma ia pagar!?", espanta-se. Chegado do campo, o marido, José Miranda, de 72 anos, diz que os 250 euros da reforma transformaram o leite em luxo. Não é que a subida dos combustíveis ou dos preços nas prateleiras do supermercado chegue até eles. Este nível de miséria está abaixo desse limiar. Mais agora que faltam as forças para orientar o gado. "Vai dando para semear batatas, couves e feijão e é isso que nos impede de morrer", diz. E depois volta a pegar na enxada para relativizar o desabafo. "Já não é tanto o tempo de vida. A gente lá se aguenta...".

Aguentam-se como se aguenta a maioria dos 4200 idosos de Baião. A maioria a viver em lugares isolados, onde não passam carros de bois, quanto mais um autocarro ou uma ambulância. "O médico é amigo da gente, mas para lá ir só de carro de praça e é cinco euros para lá, cinco euros para cá...", queixa-se Maria Cândida. Meias de felpo até aos joelhos, caminha curvada sobre um cajado. Não diz a idade porque já desistiu de contar os anos. E, ao fim de poucas perguntas, desata num choro envergonhado. "Vou desistir dos medicamentos, porque este mês o dinheiro já não chega". Limpa as lágrimas à ponta do avental e conta que a sua reforma vai quase toda para a filha que lhe garante o almoço. A do marido fica para água, luz, medicamentos e alimentação. A conta do telefone, graças a Deus, não existe porque o telefone também não. Frigorífico sim. E uma égua que os ajuda a transportar a lenha pelos montes quando o frio faz doer os ossos. "À noite comemos sopa, às vezes com um bocadinho de carne. Olhe que eu não sou de ficar a dever um tostão a ninguém...".

A não muitos quilómetros de Outoreça, a assistente social Joana Matos, da Obra do Bem-Estar Rural de Baião (OBER) conhece bem a realidade de um concelho que tem 800 famílias, ou seja, 1786 pessoas a depender do RSI. São dois pontos acima da média do distrito que já é dois pontos acima da média nacional. "São idosos que recebem pensões de sobrevivência baixas, casais desempregados, ou a trabalhar mas com rendimentos muito baixos, e alguns jovens sem qualquer perspectiva", caracteriza.

Pior do que estes estão os idosos, dispersos pelas 20 freguesias e pelos 560 lugares recônditos do concelho, a quem o RSI não chega. Nem os médicos ou sequer os autocarros. "Foram situações que os mais de 30 anos de poder democrático deixaram para trás", reconhece o autarca local, o socialista José Luís Carneiro. Desde que, há dois anos e meio chegou à câmara, o autarca construiu 22 quilómetros de novas acessibilidades e pavimentos. Em Junho de 2006, o município comprou uma unidade de saúde móvel para chegar aos idosos que só viam um estetoscópio quando a morte se punha à espreita. "Cerca de 12 mil pessoas já foram atendidas nessa unidade ao nível de tensões, colesterol, diabetes e pequenos curativos", sublinha o autarca. Porém, num total de 21.500 habitantes, 5500 continuam sem médico de família. "Nós oferecemos alojamento aos médicos que queiram trabalhar em Baião. E, até agora, já conseguimos uma médica que ficou num T3 que custou 65 mil euros, mas que permitiu que mais três mil pessoas ficassem com médico de família".

Noutra frente, a câmara lançou, em 2007, a Linha Amiga, para onde os munícipes podem ligar a pedir ajuda em tarefas como mudar uma lâmpada, pôr um vidro numa janela ou estancar uma infiltração de água. "Estas ajudas são gratuitas para cidadãos com mais de 65 anos e que tenham comprovadas carências económicas", segundo José Luís Carneiro, que também criou de raiz um fundo de solidariedade social que constrói, por exemplo, casas de banho em casas privadas que não a tenham.

Mas continua a não ser fácil. Porque, como conta Joana Matos, "há muitas pessoas a viver em condições miseráveis, mas que não pedem e até recusam a ajuda". Porquê? "Não sabem que podem viver de outra maneira, porque nunca viram nada diferente."

Homens vão trabalhar para Espanha

Ausência dos pais tem feito aumentar a indisciplina na escola

A taxa de desemprego de Baião é de dez por cento e, dos inscritos nos centros de emprego, 79 por cento são mulheres. A explicação é a do costume: os homens foram procurar trabalho nas obras em Espanha. Ao domingo à noite desaparecem em carrinhas e regressam na sexta-feira. "Essa fuga masculina para Espanha tem conduzido a uma desestruturação familiar com efeitos perniciosos", preocupa-se José Luís Carneiro, a cujo gabinete chegam ecos de uma descida no rendimento escolar das crianças "e até de alguma indisciplina, talvez pela falta de alguma autoridade familiar".

Claro que isso alarma num concelho que é, no distrito do Porto, o que apresenta o mais baixo índice de escolaridade. Metade das crianças não concluem o 9.º ano e 75 por cento não chegam ao 12.º. Por entender que a pobreza radica em boa parte "na falta de educação e formação", o autarca investiu nas escolas. "Quando cá cheguei, há dois anos e meio, nenhuma criança de Baião tinha apoio social escolar. Agora, todas têm. Nenhuma criança tinha transporte escolar e agora todas as que residem a mais de três quilómetros da escola têm autocarro". Em Novembro, o município lançou o programa Escola em Casa que envolve 200 alunos. O objectivo é "pôr os alunos a discutir a vida escolar com os pais". E, claro, evitar que estes cedam à tentação de pôr os braços miúdos a render na lavoura.