Elisa Ferreira, Eurodeputada, in Jornal de Notícias
É raro que hoje entremos num restaurante, café ou loja e não sejamos acolhidos por um simpático sotaque brasileiro ou por um quase imperceptível matiz eslavo. E, aos poucos, até começámos a acreditar estarmos transformados num país verdadeiramente europeu, com cidades que brevemente seriam os pólos dinâmicos de multiculturalismo de que, segundo muitos, nasce a vitalidade que as projecta internacionalmente; numa versão mais modesta, começámos a acreditar que o país repulsivo para os seus cidadãos que durante décadas fomos - enviando os mais inconformados (muitas vezes, os mais dinâmicos), através do mundo (da França e Alemanha à Suíça e Luxemburgo, do Brasil à América do Norte e Venezuela) -, estava transformado num país dominantemente desejado e atraente para os muitos, de todas as raças e cores, que procuram, como nós próprios fizéramos no passado, um futuro melhor...
Reconheça-se que esta atracção de cidadãos estrangeiros não é isenta de problemas, designadamente a nível de ajustamento e inserção; no entanto, também é certo que, em muitas sociedades de acolhimento (como também já se vai verificando em Portugal), os imigrantes são hoje o grupo social que se dispõe a realizar tarefas que outros recusam, o que mais alimenta o rejuvenescimento da população e um que é contribuinte líquido não desprezível para a Segurança Social.
Note-se ainda que, numa sociedade globalizada como é a actual, o intercâmbio de pessoas, ideias ou capitais não só é uma riqueza única como é também uma realidade incontornável; assim, importa mais tentar perceber o modo como nos inserimos nela e as margens dentro das quais podemos ajudar a moldá-la do que meramente criticá-la ou contestá-la. Neste quadro, e voltando à questão inicial, será mesmo real que os portugueses se inserem hoje neste espaço global acolhendo e aproveitando as oportunidades que lhes são abertas ou será que continuamos ainda sujeitos a algumas tensões dominantemente repulsivas em relação à terra pátria do passado?
Antecipando as conclusões que virão a ser publicadas no Relatório da OCDE sobre Migrações Internacionais, a divulgar em Junho, um artigo publicado no passado dia 5, no "Diário de Notícias", chamava, a este propósito, a atenção para o facto de, entre 2000 e 2006, "a percentagem de emigrantes (nacionais) para os principais destinos de emigração ter aumentado de 52,6%". Algumas informações adicionais fornecidas pelos investigadores nacionais que colaboraram no referido estudo e por outros peritos entrevistados permitem concluir que Portugal, ao contrário daquela intuição inicial, permanece uma fortíssima fonte de emigração para antigos e novos destinos.
De facto, e pensando bem, a reduzida criação de emprego que a conjuntura económica permite e a entrada maciça de novos trabalhadores levam a que se pudesse esperar que a taxa de desemprego (infelizmente bastante alta para os padrões nacionais) fosse ainda mais elevada se não fosse a quantidade de portugueses que, forçada ou voluntariamente, continuam a sair. Esta característica de simultaneidade entre imigração e forte emigração será talvez uma das maiores especificidades da actual realidade portuguesa face à dos restantes países europeus; a par de uma segunda, ainda não suficientemente aprofundada, ligada ao facto de a emigração estar a ocorrer, simultaneamente, com pessoas desqualificadas e com pessoas mais qualificadas.
O fenómeno da imigração ocupa nacional e internacionalmente a maior dose de atenção, tendendo a relegar para segundo plano o acompanhamento da emigração. Faz por isso todo o sentido que o Governo tenha constituído, em parceria com a universidade (ISCTE), e também durante a semana, um observatório da emigração. Impõe-se agora que, a partir dele, se obtenham respostas mais claras para o significado e consequência deste processo continuado, sobretudo na medida em que é indiscutível que, nesta sua versão moderna, a emigração apresenta potencialidades mas também riscos novos; no contexto europeu, por exemplo, o desaparecimento das fronteiras e a liberdade e facilidade de circulação na União Europeia permitiram uma percepção e reacção quase imediata a novas oportunidades mas, por outro lado, geraram fenómenos perigosíssimos associados ao surgimento de redes clandestinas de contratação (incluindo inimagináveis formas de trabalho escravo), como tem vindo a ser denunciado, designadamente por alguns jornalistas portugueses, na Holanda, Espanha e Itália.
Justifica-se, pois, estudar e conhecer para poder agir; seria, em particular, interessante que, nesses estudos a desenvolver, se abordasse a repartição regional das origens da emigração. Por várias razões mas também porque, tendo sido o Norte de Portugal a região cujas características conduziram a que fosse aquela que mais sofreu com o impacto da globalização, aquela em que a taxa de desemprego é mais elevada e aquela em que a dinâmica económica é mais difícil de relançar, esse território parece excessivamente fértil - e algumas notícias dispersas confirmam-no! - para a emergência de realidades merecedoras de especial atenção e tratamento. Do outro lado do espectro das competências, a aparente incapacidade - sobretudo por debilidade institucional pública e privada - para reter regionalmente muitos dos mais qualificados precisa de ser cientificamente verificada e confirmada (ou infirmada), por forma a gerar medidas de política adequadas e largamente devidas quando se verifica que é a situação no Norte a que, em grande medida e infelizmente, fundamenta a actual dimensão do QREN.
Em síntese, se a inserção num mundo globalizado é natural - e o Norte fê-la antes de muitas outras regiões e países -, é também natural e bem-vinda a globalização no tocante às opções de mobilidade dos indivíduos. Mas convém que a desatenção em relação ao que se vai passando e a ausência de acções atempadas não transformem a globalização num acelerador estrutural das nossas fragilidades.


