2.7.21

António Guterres: "Estamos a testemunhar a enorme fragilidade das sociedades e do planeta"

De Stefan Grobe & Euronews 

A migração climática e pandemia são algumas das principais questões discutidas no último Conselho Europeu em Bruxelas, entre o Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) e os líderes da União Europeia. Os temas em cima da mesa são em muitos aspetos pontos de concórdia entre os 27 e a ONU, mas nem sempre. Ao The Global Conversation, o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, falou sobre o que une e separa esta parceria, no contexto atual.

Stefan Grobe, Euronews: Há apenas uns dias, foi reconduzido para um segundo mandato de cinco anos em Nova Iorque. Isto significa basicamente duas coisas. Número um, que as pessoas estão felizes com o que faz, e dois, que gosta do trabalho. Diga-nos, então, qual vai ser o foco do seu segundo mandato?

António Guterres: Eu diria provavelmente que o foco principal será o seguinte: estamos a testemunhar a enorme fragilidade das sociedades e do planeta - a pandemia, o clima, a ilegalidade no ciberespaço, até mesmo os riscos de proliferação nuclear. E a verdade é que precisamos de mais cooperação internacional e de mais abordagens multilaterais para lidar com estes problemas. Mas para isso, precisamos de reforçar o nosso sistema multilateral e temos de garantir que, para alguns bens comuns mundiais - o clima é um bom exemplo, a saúde é outro exemplo, a preparação em relação às pandemias - precisamos de reforçar os mecanismos de governação multilateral. Veja-se a OMS.

(...) se não conseguirmos vacinar toda a gente em todo o lado, o mais cedo possível, e se o vírus sofrer uma mutação e com essa mutação tornar as vacinas inúteis, se mantivermos a enorme desigualdade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento nos projetos de recuperação, poderemos ter um colapso de muitos aspetos da economia global
António Guterres
Secretário-geral da ONU

S.G.: O maior desafio para toda a humanidade neste momento é a pandemia. Disse ao Parlamento Europeu que a situação pode tanto levar a uma rutura como a um avanço. O que quis dizer com isso?

A.G.: É muito simples. Se não tivermos sucesso, se não conseguirmos vacinar toda a gente em todo o lado, o mais cedo possível, e se o vírus sofrer uma mutação e com essa mutação tornar as vacinas inúteis, se mantivermos a enorme desigualdade entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento nos projetos de recuperação, poderemos ter um colapso de muitos aspetos da economia global. Pelo contrário, se formos capazes de vacinar toda a gente em todo o lado e derrotar o vírus e, ao mesmo tempo, resolver os problemas de dívida de liquidez dos países em desenvolvimento e garantir que os países em desenvolvimento também possam recuperar da pandemia, poderemos ter um avanço.

S.G.: Existem obviamente enormes lacunas nos cuidados de saúde, na proteção social. Mas penso que o mais urgente - e que o senhor mencionou - é a desigualdade nas vacinas. Como podemos intensificar estes esforços? O senhor mencionou isso. Disse que precisamos de um plano global, mas isto é urgente. Isto é imediato.

A.G.: Precisamos de duplicar a capacidade de produção de vacinas e precisamos de assegurar uma distribuição equitativa de vacinas. É por isso que sugeri, ao nível do G20, por exemplo, onde estão os principais países, os governos dos países que produzem vacinas ou que as podem produzir terem um grupo de trabalho de emergência, se houver apoio tecnológico suficiente, se as licenças forem disponibilizadas e as cadeias de abastecimento forem criadas de modo a duplicar essa capacidade de produção, teremos de lidar com as farmacêuticas para garantir que isso aconteça e ao mesmo tempo usar o Covax para haver uma distribuição equitativa de vacinas em todo o lado.

Os pacotes de recuperação que estão a ser implementados na Europa e em todo o lado ainda estão a investir muito dinheiro em combustíveis fósseis
António Guterres
Secretário-geral da ONU

S.G. Outra fragilidade global é o clima. Elogiou a União Europeia pelo Pacto Ecológico. Mas os críticos dizem que isto não é suficiente. É demasiado pouco, demasiado tarde. Qual é a sua resposta?

A.G.: Do ponto de vista dos objetivos, a Europa está no bom caminho em relação ao que é necessário. O que temos de ter agora são as políticas e as medidas para transformar esses objetivos em realidade. E essa é uma área de preocupação. Os pacotes de recuperação que estão a ser implementados na Europa e em todo o lado ainda estão a investir muito dinheiro em combustíveis fósseis, ainda não estão a fazer o suficiente para as energias renováveis, ainda não estamos a deslocar a tributação dos rendimentos para o carbono, ainda não estamos em condições, mesmo que a Europa tenha anunciado que não vai financiar mais centrais elétricas a carvão no mundo, mas mesmo assim, existem centrais elétricas a carvão a serem construídas em diferentes partes do mundo. Portanto, os objetivos estão bem, precisamos é de assegurar que as políticas implementadas garantam que esses objetivos são alcançados. E obviamente precisamos de fazer tudo para que o resto do mundo faça o mesmo.

(...) se não houver uma abordagem europeia à migração e ao asilo, e se não houver uma cooperação eficaz entre a Europa e os países de origem e países de destino, esses fluxos vão continuar a ser geridos por contrabandistas e traficantes
António Guterres
Secretário-geral da ONU

S.G.: Outro tópico, ao qual tem dedicado muita energia ao longo da sua carreira na vida pública, é a situação dos refugiados. A pandemia veio agravar a situação dos migrantes. Nas suas conversações com os líderes europeus, ficou com a impressão de que este é um tópico que vai ser abordado de forma apropriada no futuro?

A.G.: Penso que ainda há um longo caminho a percorrer. Mas uma coisa para mim é óbvia. Quando se tem uma União Europeia em que o comércio é livre, em que posso ir de Bruxelas para Copenhaga, ou de Bruxelas para Lisboa sem mostrar o meu passaporte e usando a mesma moeda, é evidente que não é possível analisar o asilo e a migração numa base de país por país. Devemos ter uma abordagem europeia ao asilo e à migração, porque se não o fizermos, a concorrência entre países vai tornar a situação impossível de gerir. E se não houver uma abordagem europeia à migração e ao asilo, e se não houver uma cooperação eficaz entre a Europa e os países de origem e países de destino, esses fluxos vão continuar a ser geridos por contrabandistas e traficantes.

S.G.: Há um programa em que a União Europeia é o parceiro mais importante das Nações Unidas e que é a iniciativa eminente contra a violência contra as mulheres. Trata-se de um programa relativamente recente. Fale-nos sobre ele.

A.G.: Em primeiro lugar, é importante dizer que um em cada quatro euros que gastamos na ONU vem dos contribuintes europeus e quero expressar a minha gratidão por isso. E a equipa Europa é hoje o maior doador humanitário e o maior fornecedor de assistência oficial ao desenvolvimento. A União Europeia está a apoiar financeiramente um programa que estamos a gerir na ONU, a iniciativa Spotlight, que visa - como mencionou - combater a violência contra as mulheres e raparigas. E esse programa é de longe o maior programa do mundo com estes objetivos. Só para lhe dar um exemplo, graças a este programa, 650 mil mulheres, vítimas, têm sido apoiadas em todo o mundo. Oitenta e quatro novas leis foram promulgadas em diferentes países precisamente para proteger as mulheres e raparigas em relação à violência. E, se olharmos para o número de condenações de perpetradores, verificamos um aumento de 22 porcento, o que significa que o programa abrange tudo: o apoio às vítimas, o reforço da legislação, a atuação com os sistemas judiciais, com as forças policiais, e ao mesmo tempo a sensibilização, especialmente dos homens e rapazes, para se certificarem de que têm uma abordagem adequada à masculinidade. Portanto, é um vasto conjunto de iniciativas que tem sido muito eficaz, num momento em que, infelizmente, a violência contra mulheres e raparigas está a aumentar.