Fernando Sousa, in Jornal Público
Está a acontecer em Nápoles: grupos a mando de homens sem rosto perseguem a comunidade cigana, que foge atormentada dos acampamentos. Não se sabe bem quem é que está por detrás. Mas o diário espanhol El País, que foi ao terreno, não dissocia discursos xenófobos e interesses mafiosos.
No dia 7 de Abril, de repente, uma multidão de mulheres, umas novas outras menos novas, sobre motorizadas, atacou um acampamento de ciganos em Ponticelli, semeando a destruição e o pânico entre os moradores. Mil fugiram em pânico. "Foi uma explosão inaudita", disse Salvatore Expósito, da Comunidade de Santo Egídio.
A reportagem de El País vem acompanhada por uma foto com as cinzas do que ficou do lugar, vigiadas por um polícia. No meio do caos, um ursinho de peluche abandonado na fuga, sapatos infantis. A desgraça acabou com o saque do que ficou por outros pobres.
O enviado pergunta se as gentes de Nápoles perderam a sua alma hospitaleira. Patrícia, uma dona de casa, com dois filhos, respondeu sem pestanejar: "O povo foi abandonado pelo Estado. Por isso temos medo e vivemos fechados", disse. "Não há Estado, não há recolha de lixo nem saneamento (ver caixa). De Roma para baixo é o Terceiro Mundo!"
As televisões explicaram o ataque com a tentativa de rapto de um bebé por uma jovem romena de 16 anos. Mas não terá sido por isso.
O jornal lembra um discurso do antigo líder da Aliança Naciona Gianfranco Fini à Câmara de Deputados, no dia 4 de Novembro. "Como se pode integrar a quem considera lícito ou não imoral o roubo, o não trabalhar porque devem ser as mulheres a fazê-lo, inclusive a prostituição?"
E recorda ainda que no dia 6 de Abril, na véspera portanto do ataque, o comité da ONU contra a marginalização social avisou que a Itália estava a viver uma "campanha de discriminação" sem precedentes.
Um vendedor que tinha em Ponticelli um lugar de fruta chama a atenção para o facto de o "dono" do território ser Ciro Sarno, da Camorra, neste momento preso. É esta organização a real administradora das casas populares da zona. "Dizer que não foi ela, seria mentir", disse Patrícia.
Terá sido uma união das duas coisas, concluiu o repórter de El País, Miguel Mora. É que se até ao dia 4 de Agosto não começarem as obras previstas no Plano de Recuperação Urbana do lugar entretanto reduzido a cinzas, muitas construtoras, algumas nas mãos dos grupos mafiosos, perderão subvenções no montante de 64 milhões de euros.
Mas, das duas, a mais importante parece ser a campanha denunciada pela ONU. A questão não é tanto de Nápoles, é de Itália. De acordo com uma sondagem publicada ontem em Roma, 68 por cento dos italianos querem a expulsão dos 150 mil ciganos do país, ainda que mais de metade sejam nacionais e morem aí há séculos.
a Nápoles era ontem uma cidade suja e irrespirável, com os habitantes apostados em receber o primeiro-ministro italiano Sílvio Berlusconi, que a deverá visitar dentro de dois dias, com lixo e cheiro de lixo. O calor que se faz sentir na região tornava o ambiente ainda mais pesado.
Ardiam caixotes e o fumo, e cheiro, dos restos de dia dos napolitanos espalhavam-se por todo o lado. Só durante a noite os focos de incêndio foram 84. Nalguns pontos, a circulação era impossível. Os bombeiros, ainda que acompanhados pela polícia, eram impedidos de fazer o seu trabalho e respirar era uma aventura, viu e sentiu a AFP.
Os media locais calculavam em 6 mil as toneladas de lixo deitadas à rua e em 50 mil as somadas noutras artérias da Campânia. É este o panorama - e o cheiro - que o presidente do Conselho de Ministros vai encontrar.
Berlusconi prometeu resolver o problema dos dejectos de Nápoles, tarefa que não se perfila fácil. Planos de emergência aprovados durante o Governo do antecessor, Romano Prodi, em Janeiro, não vingaram. O problema reside num desentendimento entre 22 das 64 comunas das da região sobre a recolha do lixo. A questão de a quem cabe quanto, onde depositar os materiais, já que as associações ambientalistas não concordam com alguns lugares e, enfim, uma série de obstáculos levantados pela Camorra, a máfia local, que disputa o mercado de tratamento do lixo, são alguns dos problemas.