15.5.08

Problema da fome “é difícil de resolver numa sociedade economicista”

in O Figueirense

Um problema, muitas perspectivas

Padre Jardim Moreira e botânico Jorge Paiva preocupados com a ‘crise dos cereais’


O que têm em comum um padre que tomou como sua a missão de mitigar a pobreza de forma estruturada e um investigador botânico, que ainda em Outubro esteve na Figueira a falar sobre plantas bíblicas? A ambos preocupa a calada de preços que a chamada ‘crise dos cereais’ arrasta, com consequências que - alertam - não tardarão a afectar todos os estratos sociais.

O Presidente da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal (REAPP) apelou à intervenção do Governo para “pôr cobro” ao aumento dos preços dos bens alimentares que “atinge sobretudo os mais pobres”.

“Tenho famílias no centro da cidade do Porto que dispõem apenas de 13 euros por dia. Famílias com filhos e netos”, frisou o Padre Jardim Moreira em declarações à agência Lusa.

Estes “são dados concretos” que, segundo o presidente da REAPN, “obrigam o Governo a rever as suas actuais políticas”.

O tema do aumento dos bens alimentares essenciais foi tratado numa reunião das Nações Unidas, na Suíça. O Secretário Geral da ONU, Ban Ki-moon, e os dirigentes das 27 agências e organizações das Nações Unidas rumaram a Berna, Suíça, para elaborar um plano de ataque face à crise provocada pelo disparo dos preços dos produtos alimentares, tendo a ONU e o Banco Mundial anunciado que vão criar uma “task-force” para combater a alta sem precedentes dos preços de produtos alimentares em escala mundial.

Entre outras medidas, o Presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, pediu que os países parem de impor restrições às exportações de alimentos como forma de combater a crise.

O Padre Jardim Moreira defendeu, a propósito, que “a economia e a política tem de estar ao serviço da sociedade civil e não o contrário. É preciso tomar consciência da realidade e avançar com soluções”, considerou, acrescentando que “é preciso uma maior solidariedade e equidade na repartição de bens entre ricos e pobres”.
Jardim Moreira frisou ainda que é urgente “encontrar um equilíbrio para a distribuição da riqueza”.

Em seu entender, “enquanto os governos estiverem dependentes do poder económico não serão capazes de resolver os problemas. Muitas vezes só avançam com soluções quando pressionados pelas bases”.

“Há cada vez mais famílias a queixar-se do aumento dos bens essenciais, como o pão, por exemplo, e a situação tem tendência a piorar”, disse.

O responsável admitiu que a escalada dos preços possa originar “tensões sociais” uma vez que “a estabilidade social e política depende da estabilidade dos povos”.
Uma das soluções apontadas por Jardim Moreira passa pelo incentivo à agricultura, no sentido de permitir que “muitas famílias possam auto-sustentar-se”.

“É fundamental aumentar a produção de cereais. Ainda há dias um comerciante me contou que não tinha sementes para vender. É uma situação que eu considero gravíssima e que obriga a medidas imediatas”, frisou o Padre Jardim Moreira.
O Presidente da REAPN admitiu tratar-se “certamente de uma situação comum a vários países”, a pedir uma solução concertada.

Botânico rejeita combustíveis a partir de cereais

O botânico Jorge Paiva já rejeitou a produção de combustíveis a partir dos cereais, por considerar que esta ‘solução’ ameaça a alimentação humana no mundo, admitindo apenas que seja aproveitado o lixo orgânico para fins energéticos.

Jorge Paiva, que em Outubro de 2007 ‘abriu’ o ciclo de Conferências e Palestras dirigidas às escolas do Concelho no Casino Figueira, com uma prelecção sobre “As Plantas Bíblicas e a Bíblia”, foi um dos notáveis que o país quis ouvir a propósito da crise no sector alimentar.

“A produção de biocombustíveis deve ser abandonada”, defendeu o ambientalista, catedrático aposentado da Universidade de Coimbra, e investigador do Instituto Botânico daquela instituição.

Em declarações à agência Lusa, Jorge Paiva disse que os biocombustíveis “não são alternativa ao petróleo”, numa altura em que se verifica um aumento do preço desta fonte energética nos mercados mundiais.

“Os biocombustíveis não vão resolver o problema do aquecimento global, uma vez que libertam na mesma dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera”, adiantou, frisando, por outro lado, que tal opção “é brutalmente prejudicial” para subsistência da Humanidade, ao concorrer com o uso de cereais na alimentação.

Jorge Paiva, que tem denunciado a obtenção de combustíveis a partir do milho e outros cereais, criticou “a sociedade economicista e as grandes companhias mundiais, a quem interessa em especial o lucro”.

As multinacionais que incrementam agora o cultivo de cereais “não estão preocupadas em resolver o problema da fome”, querem antes “ganhar mais dinheiro”, apostando nessas produções agrícolas com fins energéticos.

“Descobriram que é mais barato, talvez, produzir combustíveis a partir de plantas. E, como isso dá lucro, subiram os preços dos alimentos”, lamentou.

Na opinião do investigador, “deve ser abandonada a produção de biocombustíveis” baseada na transformação de cereais, sendo necessário que os Estados tomem medidas para reduzir os gastos de energia.

Jorge Paiva entende, no entanto, que deve ser incentivada a produção de energia através do reaproveitamento de resíduos orgânicos urbanos, agrícolas e florestais.
Por outro lado, disse que os recentes avanços científicos da biotecnologia, anunciados “como solução para a fome no mundo”, têm reforçado sobretudo “os lucros das grandes companhias”.

Admitindo que o problema da fome “é difícil de resolver numa sociedade economicista”, Jorge Paiva preconizou medidas para controlar a natalidade.
“É preciso uma limitação da natalidade. Já não cabemos nesta ‘gaiola global’. Temos a mania que mandamos no mundo, mas o Homem pode entrar em extinção antes de outros animais”, advertiu.