Gina Pereira, in Jornal de Notícias
A menos de dois meses de terminar o mandato de três anos como provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa – que completa a 23 de Agosto –, Rui Cunha, 64 anos, ex-secretário de Estado da Inserção Social e adjunto do ministro do Trabalho, faz um balanço positivo.
E admite que só agora está em condições de começar a fazer as transformações necessárias. Em entrevista ao JN, admite que é com “entusiasmo” que encara a hipótese de vir ser reconduzido no cargo.
A situação de dificuldade e crise que afecta a classe média já se começou a sentir na Santa Casa?
Em relação aos dados que possuímos do primeiro trimestre, temos dados contraditórios. Enquanto aumentou o afluxo de pessoas aos serviços de emergência social, diminuiu o número de pessoas a utilizarem o nosso refeitório e abrigos nocturnos, embora não sejam decréscimos muito significativos.
Quem procura apoio na emergência social?
São pessoas em situações difíceis, que vêm pedir auxílio ou porque não conseguem pagar a renda da casa, porque têm dívidas que não podem satisfazer ou porque ficaram desempregadas e a situação do agregado familiar piorou. Há um maior afluxo dessas situações de agudização económico-social a recorrem aos nossos serviços.
Tem dados sobre esse crescimento?
Aumentaram à volta de 6%.
E que tipo de apoio é que a SCML lhes pode dar?
Umas vezes através de subsídios, reembolsáveis ou não, consoante o estudo que a assistente social faz do caso, outras vezes através de alojamentos e da colocação de pessoas em pensões custeadas por nós, ou outro tipo de apoios que as assistentes sociais, ao analisarem a situação do agregado, detectem como necessários. Se o agregado tiver crianças, por exemplo, pode encontrar-se uma solução numa creche da Santa Casa, evitando os encargos com uma creche privada. Há muitas formas de intervir junto de um agregado familiar.
Já tem situações de pessoas que foram despejadas por não conseguirem pagar as casas?
Despejadas não tenho conhecimento.
E que leitura faz dessa situação?
Estes dados contraditórios são de difícil leitura e não me quero precipitar porque três meses é muito pouco tempo para fazer uma leitura consistente. Pode significar que não tem aparecido tanto o tradicional sem-abrigo pobre, mas uma classe média que começa a sentir mais necessidades e que não estava ainda sinalizada.
Na semana passada, o porta-voz da Conferência Episcopal disse que as instituições da Igreja já estavam a ter dificuldades em dar resposta aos apoios que lhe eram pedidos. A SCML também tem tido esta dificuldade?
Felizmente não sentimos isso, até porque temos uma estrutura sólida.
Visto que se prevê que esta situação se vai manter durante algum tempo, a SCML está a preparar-se para mais pedidos?
A SCML vai comemorar na próxima semana 510 anos, portanto tem uma larga experiência nessas matérias e nós procuramos antecipar os novos fenómenos sociais. Infelizmente, mantêm-se muitos dos pressupostos sociais com que a SCML foi criada há 510 anos mas evidentemente que os problemas sociais vão sendo diferentes e vão surgindo novas questões que tentamos antecipar o mais possível.
Como é que estão a fazer isso?
Estamos a analisar sobretudo os bairros mais carenciados de Lisboa, o casco velho, onde os nosso serviços de proximidade estão instalados.
Aí são sobretudo os idosos que precisam de mais ajuda, certo?
Há pouco tempo, foi publicado o relatório do Observatório de Luta Contra a Pobreza e verificámos duas freguesias tipo: Marvila e Castelo. No Castelo, que terá neste momento 587 residentes, a esmagadora maioria da população é idosa. Marvila é uma freguesia muito jovem, provém dos realojamentos dos bairros sociais. É uma freguesia onde temos 12 equipamentos sociais porque de facto há ali muitos problemas.
É onde têm mais pedidos de ajuda?
No ano passado apoiámos 9400 utentes na freguesia de Marvila e investimos ali 10 milhões de euros. Há ali problemas de desemprego, famílias desestruturadas, dificuldades de colocação de crianças, cresches, jardins de infância.
Quer dizer que ainda faltam equipamentos?
Nunca se esgotam. Em Lisboa, a taxa de cobertura de equipamentos em relação à infância é de mais de 50% em relação aos residentes de Lisboa. É uma taxa elevadíssima. Mas as pessoas que trabalham em Lisboa e moram nos concelhos limítrofes vêm todas utilizar equipamentos em Lisboa, trazem os filhos. Pelo que continua a haver necessidade de equipamentos. Vamos agora inaugurar mais duas creches na Charneca, com 64 lugares. Em relação aos idosos, a situação é contrária: a taxa de cobertura é muito baixa, pouco ultrapassa os 2,5% e portanto é preciso continuar a criar equipamentos. Vamos agora inaugurar no dia 15 uma nova residência para idosos em Campolide. Mas, por muito que se alargue o apoio domiciliário, que se criem novas residências assistidas e temporárias, a taxa é sempre muito baixa em Lisboa.
Isso é preocupante na medida em que a tendência para o envelhecimento da população são cada vez maiores.
Lisboa já tem 23,5% da população com mais de 65 anos e é das cidades da Europa que tem um maior percentagem de pessoas com mais de 80 anos. A situação de Lisboa em relação aos idosos requer muitos esforços. Neste momento, nós apoiamos quase cinco mil idosos na cidade de Lisboa em apoio domiciliário, residências assistidas e temporárias.
É pouco no universo de idosos que existe.
É o possível. Temos vindo a tentar alargar. Para este ano queremos chegar a mais 145 idosos em apoio domiciliário, em lares a mais 121, em residências temporárias a mais 46 e em residências assistidas a mais 16. No apoio domiciliário temos conseguido alargar mais. Quando aqui chegámos há três anos tinhamos três freguesias com apoio domiciliário integrado, que inclui os cuidados de saúde e funciona sete dias por semana. Agora há 20, que correspondem às freguesias mais envelhecidas, e estamos a trabalhar para alargar esse número.
Mais quantas até ao fim do ano?
Queremos alargar a mais 145 idosos. A próxima freguesia a ser integrada será a dos Anjos.
Recentemente, num colóquio sobre envelhecimento na Gulbenkian, a ex-provedora da SCML, Maria José Nogueira Pinto, disse que quando o Euromilhões veio para Portugal um dos objectivos era criar uma linha dedicada ao envelhecimento e que isso não aconteceu. È verdade?
O que é verdade é que quando cá chegámos, em Agosto de 2005, não havia um tostão gasto nesses equipamentos. Havia cá muito dinheiro proveniente do Euromilhões, mas não havia um tostão investido. Admito que não tenha havido tempo, até porque não é de um dia para o outro que se constroem estes equipamentos. É verdade que a Santa Casa tem um património grande, mas não é nesse património que se podem pôr estes espaços a funcionar. Nâo é num prédio de três andares sem elevador...A SCML tem de ir à procura de acordos, como agora fizemos agora com a Câmara.
Onde é que estava o dinheiro?
Estava cá e no Ministério. Quando o Euromilhões foi criado, em Outubro de 2004, 50% era para a SCML e 50% para o Ministério do Trabalho e destinava-se a apoio a idosos e deficientes. O decreto-lei 56/2006 passou a fazer uma distribuição nova do dinheiro dos jogos: o Euromihões passou a ser um dos jogos que entra no bolo e o bolo passou a ser distribuídos pelos vários beneficiários. A SCML, que até aí recebia 50% do Euromilhões, passou a receber 28% de todos os jogos.
Isso significa um grande decréscimo.
Como é evidente, as nossas receitas diminuíram.
Quanto?
Nós recebíamos antes 50% do Euromilhões, passámos a receber 28% do total. Mas evidentemente que, com o dinheiro que havia nesta casa, começámos a aplicar em novos equipamentos, novas creches, novas residências. Hoje em dia o dinheiro já não é aplicado só para idosos, é aplicado para a intervenção social.
As receitas dos jogos têm vindo a baixar?
2006 foi um ano extraordinário: houve dois ciclos de 11 jackpots e uma série de portuguesesa ganhar, o que criou um clima de incentivo. 2006 foi um ano atípico. Já em 2007, evidentemente que se baixou em relação a 2006, mas vendeu-se mais do que em 2005. E agora estamos ligeiramente abaixo do que em 2007.
Mas a tendência é generalizada em todos os jogos?
Em todos os jogos e em toda a Europa.
E há alguma estratégia da SCML para tentar contrariar essa tendência, visto que é daí a maior parte da vossa receita?
Estamos a pensar em novos jogos, uns de carácter nacional, outros com parcerias internacionais. Estamos ainda em conversações e estudo, mas não queremos ficar quase na dependência do mono-produto Euromilhões. Queremos avançar com outros jogos porque é preciso uma nova dinânima.
Como é que cria um novo jogo internacional?
Em protocolos com outros países. O Euromilhões nasceu de três países, ao qual depois aderiram mais três. Pode haver um jogo que nasça só de dois, por exemplo no âmbito das apostas desportivas ou um diferente destes que até agora têm aparecido.
E em relação ao jogos tradicionais, há algum jogo para acabar?
Não me parece, mas em relação ao Totobola temos de encontrar outro tipo de jogo nas apostas desportivas. Mesmo antes do aparecimento do Euromihões, o Totobola já vinha em queda há muito tempo e depois essa quebra acentuou-se ainda mais. Neste momento é o jogo que tem menos procura.
Com esta diminuição da receita, como é que a SCML consegue ter margem para continuar a alargar os serviços e ter novos projectos?
Felizmente, temos uma reserva razoável e também tentamos fazer uma gestão criteriosa. Alegra-nos um estudo comparado que pedimos a uma equipa do ISEG que concluiu que a estrutura de custos do nosso departamento de jogos é a mais baixa de todos os operadores europeus, sejam públicos ou privados. Por outro lado, embora os jogos representem 70% do financiamento da casa, temos proveitos através da gestão do nosso património, dos legados e das comparticipações dos utentes.
A Santa Casa continua a ser uma entidade em quem as pessoas confiam para entregar o seu património?
Sim, em eue as pessoas confiam, respeitam e julgo que não temos defraudado. A média anual dos legados nos últimos três anos tem sido de 2,8 milhões de euros. Há de tudo, desde dinheiro, jóias e prédios. No final do ano passado, houve um grande legado de uma professora universitária da região de Portalegre que nos deixou 71 prédios, 30 rústicos e 41 urbanos localizados nos concelhos de Castelo Vide, Crato, Marvão, Portalegre, Monforte. A única condição que pôs é que, em dois anos, a SCML lhe publique os estudos que ela tinha feito sobretudo na área da genealogia e já estamos a tratr disso.
E o que é que a SCML faz agora com esse património?
Até aqui temos tido a preocupação de não alienar, salvo quando herdamos propriedades com outros proprietários. Mas não temos nenhum tabu quanto à alienação.
Em relação ao património que a SCML tem em Lisboa, muito dele está degradado e sem condições para receber equipamentos. O que pensam fazer?
Temos habitações arrendadas e nessas temos obrigação de fazer obras. Mas temos também algumas situações de casas que estão entaipadas e nessas temos de fazer obras. Ainda no outro dia, o presidente da CML propôs-nos fazer um protocolo, sobretudo aqui para a zona antiga, que nos permitisse a nós, à CML e a empreendedores privados encontrar uma forma de acordo para reabilitar este edificado, rentabilizando-o e contribuindo para a beneficiação da cidade.
E em relação aos equipamentos que estão situados em edifícios que já não têm as devidas condições?
Estamos neste momento a fazer obras de requalificação em 60 equipamentos, num total de 104. Temos equipamentos que, com obras de requalificação, ficam em estado satisfatório e temos outros que já não são recuperáveis e andamos à procura de novos espaços.
O que farão com esses edidícios?
Podem ser requalificados para outro tipo de utilização, talvez habitação.
Têm tido dificuldade em arranjar novos espaços?
É muito difícil arranjar espaços em Lisboa, a partir de determinadas áreas e com os requisitos que são imperativos para equipamentos sociais.
O que é que precisava agora?
Sobretudo espaços para crianças e idosos, mas não espaços tradicionais. São espaços mais pequenos mas que têm de ter condições em matéria de acessibilidades.
Quantas residências assistidas têm neste momento?
Neste momento temos apenas uma em Campo de Ourique e contamos este ano abrir mais uma ou duas para mais 16 pessoas. A residência assistida destina-se a realojar pessoas que vivem isoladas, que ainda têm a sua independência mas que carecem de um serviço colectivo. O problema é que nós não as queremos retirar do sítio onde elas vivem.
E há mais projectos?
Há e de residências temporárias também. Neste momento temos uma, com 10 pessoas, e queremos criar mais umas quatro para mais 46 pessoas este ano.
Os principais beneficiários da SCML são?
Os mais carenciados. O maior número neste momento são idosos e crianças.
E o protocolo que têm com a Fundação Portugal Telecom e a PT Comunicações?
É um projecto piloto. Instalaram-se em casa de 20 idosos, sobretudo pessoas com dificuldades de locomoção, 20 computadores com uma ligação pro-activa com dois centros de dia nossos em que as pessoas interagem com o que se está a passar no centro de dia (Sé e São Boaventura). Esperamos poder alargar este projecto. E em breve vamos também alargar o call-center que temos para os jogos disponibilizando-o para os idosos. Ainda este ano.
A ideia de avançar com a lotaria instantânea na internet é para avançar?
Sim, mas primeiro temos de publicar um código de conduta no nosso portal na internet e depois vamos ensaiá-la na internet. Temos de ter algum cuidado porque a lotaria instantânea é um jogo que provoca alguma aditividade e nós não queremos isso.
A raspadinha ainda é um jogo com muita atractividade?
Sim, é um dos jogos que continua a subir.
O seu mandato tem sido pautado por uma postura discreta, não o temos ouvido fazer grandes descalarções. Porquê?
Eu acho que esta casa mão é para andar em bocos de pés, é para ser o mais operativa e eficaz possível e não é para andar a fazer política.
Quando é que termina o seu mandato?
A 23 de Agosto.
E que balanço faz?
Um balanço satisfatório. A casa não se conhece de um dia para outro. Julgo que os três anos são positivos mas, ao fim de três anos, é quando se está em condições de proceder às transformações que são necessárias.
Espera portanto ser reconduzido?
Digamos que estou entusiasmado com as transformações que esta casa carece.
Já tem esse sinal de que será reconduzido?
Não queria andiantar isso.
E que projectos tem para um segundo mandato, se ele se vier a concretizar?
Esta casa requer algumas transformações de alguma profundidado no que respeita aos sistemas de informatização e controle e de reorganização da estrutura orgânica.