18.6.08

Violência contra as mulheres baixou nos últimos 12 anos

Andreia Sanches, in Jornal Público

Cerca de uma em cada três portuguesas já foi vítima de violência física, sexual ou psicológica, revela inquérito


O número de portuguesas que dizem já ter sido vítimas de violência física, sexual ou psicológica diminuiu. Mas mais de uma em cada três mulheres ainda relata pelo menos uma agressão deste tipo. Um estudo encomendado pelo Governo mostra a evolução do fenómeno desde que, em 1995, foi feito o primeiro inquérito nacional sobre violência de género. E permite fazer uma primeira avaliação do efeito das políticas desenvolvidas nesta área.

Os resultados do inquérito aplicado, em 2007, a uma amostra representativa de homens e mulheres com mais de 18 anos, em Portugal continental, são hoje apresentados em Lisboa numa cerimónia onde estará o secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, Jorge Lacão. E revelam uma quebra de cerca de dez pontos percentuais na prevalência da vitimação das mulheres. Tendo em conta que em 1995 esta rondava os 48 por cento, em 2007 a taxa andará à volta dos 38 por cento.

Manuel Lisboa, sociólogo da Universidade Nova de Lisboa (UNL) que coordenou a equipa que fez o estudo para a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (Cig, uma estrutura que está integrada na Presidência do Conselho de Ministros), sublinha, no entanto, que "uma parte significativa da violência contra as mulheres" continua a acontecer na esfera privada.

O investigador não se alonga na especificação dos números que hoje serão revelados. Mas explica que mais de metade das mulheres que relataram ter sido vítimas de violência nos 12 meses anteriores ao inquérito tinham sido agredidas por familiares, companheiros, ex-companheiros - ou seja, sofreram alguma forma de violência doméstica, seja física ("bofetadas, murros, pontapés", por exemplo), sexual (como relações sexuais forçadas) ou psicológica (humilhações, "gritos e ameaças para atemorizar", por vezes com o uso de expressões como "mato-te").

Novidade é o facto de os homens também terem sido questionados - o que acontece pela primeira vez em Portugal (e pela segunda vez na Europa) numa investigação sobre violência de género. "Para podermos fazer comparações rigorosas, os homens foram sujeitos às mesmas perguntas que as mulheres, apenas com algumas adaptações inerentes às suas especificidades", explica Manuel Lisboa.

Homens reagem mais

Resultados: os homens também são alvo de violência. "Mas enquanto a violência exercida contra as mulheres é uma violência de género, a que é exercida contra os homens é uma violência que decorre fundamentalmente da violência em geral" - tem como autores outros homens, conhecidos ou desconhecidos da vítima, e raramente ocorre no seio da família. "A pouca que ocorre dentro de casa é geralmente exercida de pais sobre os filhos, no âmbito daquilo que para estes pais é considerado o processo educativo."

Há uma cultura de violência nos homens portugueses? Com os dados que tem, Lisboa recusa fazer essa leitura. "A minha hipótese é esta: os homens continuam a ter na nossa sociedade uma acção social bastante intensa e, portanto, a probabilidade de estarem expostos a uma conflitualidade e de serem vítimas de outros homens é superior à das mulheres - que têm estado mais reservadas."

Por outro lado, nota, "uma das expectativas associadas ao que se considera ser o papel masculino é a de responder logo, de ser reactivo". E os resultados reflectem isso: "Quando são vítimas de violência, os homens vão mais à polícia, são violentos com quem é violento com eles."

De 1995 para cá, vários estudos nesta área têm sido feitos em Portugal - caso de uma investigação sobre os custos sociais e económicos do fenómeno, divulgada há três anos, onde se apontava já para uma taxa de vitimação de 30 por cento (de resto, semelhante à que se regista a nível internacional).

"Contudo, esses estudos não estavam orientados para a comparação com o de 1995, não permitiam analisar a evolução do fenómeno, independentemente de algumas ilações que pudéssemos ir tirando. Este novo estudo já permite comparações, tem uma metodologia idêntica ao de 95 e, ao mesmo tempo, beneficia de tudo o que se fez ao nível da investigação nos últimos anos."

A equipa de Manuel Lisboa foi constituída pelos investigadores Nélson Lourenço, Zélia Barroso, Alexandra Leandro, Joana Patrício e Ricardo Santana, do Gabinete de Investigação em Sociologia Aplicada e do Centro de Estudos de Sociologia da UNL. Outros especialistas de várias universidades integraram um grupo de consultores.

50%
Metade das mulheres agredidas no ano anterior ao inquérito tinham sido vítimas de violência doméstica

"A maioria das mulheres ainda continua a calar e a deixar andar"

A avaliação é positiva: 12 anos de políticas contra a violência doméstica têm dado resultados. Agora, é preciso apostar em medidas estruturais, na educação e na mudança de mentalidades, afirma Manuel Lisboa, o investigador da Universidade Nova de Lisboa que coordenou o inquérito sobre violência de género que é hoje apresentado.
De 1995 para cá houve uma diminuição no número de mulheres vítimas de violência. Que outras conclusões destaca?

Há, de facto, uma melhoria do ponto de vista da prevalência da vitimação. Essa é a primeira conclusão. A segunda é que há uma melhoria também muito significativa em relação àquilo que são as participações às polícias. Já estamos muito longe do que se passava em 1995, quando apenas cerca de um por cento das mulheres vítimas de violência participavam. Agora, nas situações mais graves, a percentagem pode ir até aos 21 por cento. Há também mais mulheres que referem que foram aos hospitais e mais a dizer que se divorciaram [na sequência dos actos violentos de que foram alvo], o que não aparecia no estudo de 1995. Mas a maioria ainda continua a calar e a deixar andar.

Como interpreta esses resultados?

Todo o trabalho que foi feito ao nível das polícias funcionou. Agora, o que notamos também é que, olhando apenas para as mulheres que dizem ter sido alvo de actos de violência nos 12 meses anteriores ao inquérito, metade foi vítima dessa violência na esfera da vida privada. E esta é a mesma percentagem que se registava em 1995. O ciúme, o sentimento de posse, o álcool continuam, na opinião das vítimas, a ser as causas dessa violência.

O que é que isso revela?

A nossa interpretação é que há realmente uma dimensão estrutural que ainda não está resolvida. Que é a das mentalidades, a dos papéis de género, o que se considera ser masculino e feminino, as relações de poder - nomeadamente, ao nível das relações interpessoais entre parceiros ou ex-parceiros. E isto, de facto, não está resolvido.
A esfera pública está a mudar mais depressa do que a privada?

Exactamente. O estudo de 1995 foi particularmente importante para tornar o fenómeno mais visível. E uma das muitas consequências desse estudo foi que ele mostrou que a lei que então existia, que considerava a violência doméstica um crime semipúblico, tinha que ser mexida porque estes crimes estavam escondidos no espaço da casa e da família e as pessoas não participavam. Foi o segundo [estudo do género] na Europa, depois da Holanda, e marcou e deu argumentos aos actores políticos [para actuar]. Agora, os resultados deste novo estudo mostram o seguinte: o caminho que se tem feito está a produzir bons resultados, mas é preciso ir mais longe e agir ao nível da alteração das mentalidades, dos valores e trabalhar ao nível da prevenção.

Como assim?

Ao nível das camadas mais jovens, a questão da educação, a escola, tem um papel fundamental. Este estudo dá indicações muito claras sobre a necessidade de haver um reforço da orientação da política que se tem seguido a este nível. Há que complementar as medidas conjunturais com medidas estruturais, com efeitos de médio e longo prazo, provavelmente com efeitos só ao fim de uma, duas, três gerações, mas que são fundamentais.

Falhou-se a esse nível?

É mais correcto colocar a questão de outra forma: foi preciso estabelecer prioridades. Perante uma mulher que está em risco de ser assassinada, o que tenho que fazer é dar uma resposta imediata, dar uma casa-abrigo, apoiar... essas prioridades foram estabelecidas, deram resultados, óptimo! Tem havido um esforço grande em termos da visibilidade de campanhas, de formação dos técnicos, de polícias, de médicos, de enfermeiros, e isso tem tido efeitos positivos... Mas a questão da igualdade de género não se resolve numa geração, vai demorar tempo, por isso é que temos que começar o mais cedo possível.

De 1995 para cá, o crime de violência doméstica passou a ser público [não depende de queixa da vítima, para que dê lugar a uma investigação, e a vítima não pode retirar a queixa]. Qual foi o impacto dessa medida?

Tudo leva a crer que um dos factores que podem ter contribuído para a maior visibilidade e para as mulheres se sentirem mais à vontade em ir às polícias terá sido o facto de passar a ser um crime público. Isto é uma questão muito polémica, há quem não concorde, mas quando uma mulher pode, em qualquer altura do processo, retirar a queixa, obviamente que o autor vai pressioná-la. Portanto, muitas mulheres provavelmente pensavam: "Para quê [fazer queixa] se a meio do processo acabo por ter que retirá-la?" A partir do momento em que isto passou para a esfera pública, a mulher ou vai calando porque ainda não chegou àquele ponto em que diz "vou queixar-me", ou então, a partir do momento em que faz a queixa, a queixa está feita.

Há estratos sociais mais afectados que outros?

Há uma coisa que, para nós, já era claro em 1995: o problema é transversal a todos os estratos sociais. Em relação a alguns estratos podia ocorrer mais um certo tipo de actos (mais violência física, mais sexual...), mas o que os resultados mostram é que não podemos dizer que as mulheres de estratos mais baixos são mais vítimas. Tal como não há um perfil do agressor.

Há vários dados que precisamos agora de estudar melhor. À medida que as mulheres vão sentindo que têm mais apoio, denunciam mais, vão mais à polícia, isto eventualmente pode gerar um aumento da conflitualidade entre parceiros. As mulheres deixam de ser os receptáculos passivos da violência para passarem a ser também reactivas.

Podem também tornar-se cada vez mais agressoras?

Pode ser que sim, mas teremos que estudar melhor esse aspecto.


Algumas medidas adoptadas desde 1995

1995 Revisão do Código Penal, com agravamento das penas dos crimes de maus tratos do cônjuge

1997 Conselho de Ministros aprova o 1.º Plano Global para a Igualdade, que prevê, entre outros, a criação de um serviço de atendimento telefónico com o apoio do Ministério da Justiça para vítimas de violência doméstica

1998 O Código de Processo Penal passa a incluir medidas de afastamento do agressor da casa de morada comum com a vítima em casos de violência doméstica

1999 A Lei 107/99 cria a rede pública de casas de apoio a mulheres vítimas de violência e é aprovado o 1.º Plano Nacional contra a Violência Doméstica
2000 Surgem, por impulso de organizações não governamentais, as primeiras casas de abrigo. Em 2007 havia 34

2004 Começam a surgir na GNR os Núcleos Mulher e Menor, onde se garante condições de privacidade e de conforto ajustadas ao atendimento das vítimas. Hoje há quase 400 salas de apoio nas esquadras da PSP e postos da GNR

2007 O Código Penal passa a tipificar especificamente a violência doméstica como crime autónomo, abrangendo não só os cônjuges, mas também os ex-cônjuges ou as pessoas que vivam relações análogas