Kathleen Gomes, in Jornal Público
Ninguém devia viver como Norberto Teixeira. O quarto dele é uma mancha escura. O gabinete autárquico da habitação social admite que o realojamento foi feito à pressa
Se queremos saber o que é um bairro social onde nunca entrámos, a pior altura para fazê-lo é quando esse bairro está nas televisões: carrinha azul da PSP a passar na avenida principal, graffitto provocador pintado de fresco, putos a pedir dinheiro por uma entrevista ("50 euros!"), putos a desconversar, jovens a interpelar jornalistas para vender filmes com a noite dos acontecimentos ("2000 euros!"). Ontem, o PÚBLICO não esteve na Quinta da Fonte, Apelação. O PÚBLICO esteve num bairro dito "social" sob efeito mediático que se chama Quinta da Fonte, Apelação.
Uma parede escrita com Fuck the police fica sempre bem na fotografia, até porque bate certo com o imaginário de um bairro "problemático". Os moradores sabem-no - têm televisão -, por isso o que têm na ponta da língua, sempre que vêem um jornalista, é a reprodução dos clichés saídos na imprensa (onde se chegou a comparar a Quinta da Fonte com o Iraque) ou a ironia. "Nós aqui andamos sempre com facas e armas para nos protegermos", diz uma rapariga. O sarcasmo é como ela diz o que pensa.Não é preciso fazer uma única pergunta para as pessoas falarem sobre a tensão da última semana. "Olhe, eu vou-lhe dizer uma coisa: os ciganos não deviam cá morar!", diz Norberto Teixeira, de 64 anos. Ele é "branco", notava um morador de origem africana, como quem diz: neutro. É mais difícil conseguir que falem do dia-a-dia. Da vida no bairro. É como se fossem apanhadas desprevenidas."Eu só estou no bairro em casa", diz uma mulher de 73 anos, apontando o dedo para o alto, antes de entrar no prédio. "Não vou dar nome. Meu nome não, é proibido." Em frente, no lote um da praceta, um primeiro andar está de porta escancarada. Gavetas e armários foram despejados e lançados pelo chão. O cenário não parece de saque mas de vandalização. Na cozinha, restos de uma refeição na mesa, frigideira pousada no fogão, uma braçada farta de orégãos viçosos pendurada ao lado das pegas. Mas a primeira coisa que se vê, quando se entra nesta casa, é um retrato de casamento: noiva com grinalda, com bica e laranjeira, ela e ele olhando para nós.
Das três casas que o PÚBLICO viu, habitadas por famílias de etnia cigana e que se encontram vandalizadas ou destruídas, é a mais intacta. Os móveis ainda estão de pé. Como se os moradores tivessem saído à pressa."Não sei por que é que ele fugiu. É um cigano porreiro, ele e a mulher!", diz Antónia, de 42 anos, caracóis brancos a despontar sobre a testa, debaixo do cabelo liso e pintado, avental para se defender do sol e calças justas de licra. "Devem ter ficado com medo, pensando que os pretos se iam vingar neles. Mas nós não somos assim. Nós vingamos quem nos tocou na pele." O tom pode soar ameaçador, mas não é. Antónia é doce.Vivia numa barraca na Quinta do Carmo, Portela, antes de a Câmara de Loures realojar a família na Quinta da Fonte, há 14 anos. A filha mais nova, Antonieta, de nove anos, já nasceu aqui. Passou a viver melhor? "Até hoje. Só houve essa confusão." Já vive no bairro há mais tempo que muitos, viu chegar as sucessivas vagas de realojados vindos de outros pontos do concelho. "Tiraram da Portela, do Prior Velho, da Bugalheira, não sei de onde... Agora é uma mistura." Essa mistura já tinha causado problemas? "
Nunca. Não sei qual o demónio que entrou naquele dia, mas não tenho queixa dos ciganos." Dedo em riste: uma das suas melhores amigas é de etnia cigana, mora ao fim da rua ("Está a ver aquele carro?"), e Antónia trata-a por "mãe". Mas não vale a pena insistir para ir até lá. Os moradores de etnia cigana que persistem "estão revoltados". "Sempre, em cada etnia, tem os bons e os maus. É isso que eles [população cigana] têm de perceber. Há uns que percebem, mas não querem falar."O Gabinete de Intervenção da Câmara de Loures (GIL) gere o património habitacional da câmara. A técnica Cristina Silvestre, que acompanha o bairro há ano e meio, explica que a Quinta da Fonte, com 2500 habitantes, não é um bairro de realojamento de raiz: a necessidade surgiu com a Expo '98, e a autarquia adquiriu parte dos lotes a uma cooperativa de habitação social. Realojamento à pressa, para o qual as pessoas não foram preparadas: "A maioria não se conhecia, não havia qualquer referência. Foi uma mudança de espaço, de vizinhança, de forma de habitação. Nesse aspecto pecou-se, não houve tempo para preparar".
Há tendas a serem montadas num aterro à entrada do bairro, em campo aberto e debaixo do sol, tendas escuras de cinco por seis metros. A Câmara de Loures já fez saber que as famílias de etnia cigana que abandonaram o bairro só podem ser realojadas no bairro. "
A obrigação que esta autarquia tinha para com eles já foi cumprida", diz Silvestre. "O que está aqui em causa é uma necessidade de segurança."Mais acima, na outra ponta da avenida, entramos na casa de Norberto Teixeira. Ele está na rua, numa cadeira de rodas, e manda a sobrinha Florinda mostrar-nos a casa, um rés-do-chão. Cheiro a mofo, almoço inacabado na mesa de jantar, a parede do quarto junto à cama de Norberto tem manchas negras de humidade do chão ao tecto. "De Inverno tínhamos de andar a desviar a cama porque chovia." Norberto é viúvo, pai de quatro filhos (o mais novo, de 18 anos, vive com ele) e duas filhas. "Ele é sozinho, não tem ninguém", diz a sobrinha, de 33. "A minha casa também ficou assim, o meu marido é que começou a pintá-la." Não é só caso para culpar a autarquia, como faz a população. Nem para perguntar onde está a família de Norberto. A casa de Norberto envergonha qualquer pessoa que vive em Portugal hoje.