Helena Neves, in Jornal de Notícias
Henrique, Eduardo e Francisco sobreviveram à guerra colonial. 30 anos depois travam uma nova batalha: reconstruir a vida perdida nas ruas do álcool e das memórias de combates que os fizeram sem-abrigo.
Na quinta-feira fez um ano que Henrique Castro entrou para o centro de reinserção social da Comunidade Vida e Paz em Sobral de Monte Agraço, pondo fim a seis anos nas ruas de Faro em que a sua companhia diária foram "pacotes de vinho".
Com uma voz pousada e olhar cabisbaixo, Henrique, 59 anos, recordou com amargura esses tempos que o separaram da família, falou do sonho de reatar a relação com a mulher.
Os dias de Henrique na comunidade são ocupados a fazer pinturas em tecido - "antes pintava automóveis e electrodomésticos" - e a pensar na carta de amor que vai escrever à mulher para a pedir de novo em casamento, depois de já ter reconquistado a amizade dos dois filhos. "Sobrevivi a uma guerra e agora tenha outra pela frente: conquistar a minha mulher e retomar a minha vida perdida há 14 anos", sublinhou com um sorriso rasgado.
O percurso de Henrique assemelha-se ao de Eduardo, 57 anos. Também combateu em Angola e o vício do álcool arruinou-lhe a vida. "Já bebia antes de ir para a guerra", contou este homem magro e com o rosto marcado pelo sofrimento.
Durante anos, a rua foi a sua casa. Um dia teve um acidente, partiu a clavícula e foi parar à cama de um hospital. "Não sei como vim parar à comunidade e já cá estou há quatro anos. Se não fosse isto já estava morto", disse Eduardo, enquanto dava os últimos retoques numa jarra de barro na olaria, onde trabalha diariamente.
Da vez em quando visita os amigos em Alfama, o bairro onde nasceu. A irmã é a família mais chegada que tem, mas já não a vê há 10 anos.
O combate na Guiné-Bissau deixou também marcas profundas em António Pereira, 57 anos. "É o sistema nervoso", comentou, contando que teve de abandonar um tratamento de desintoxicação de álcool no Júlio de Matos porque não conseguia aguentar o barulho dos aviões a passar por cima do hospital.
"Aqui é mais sossegado", frisou. Os dias de António são passados a tratar da roupa da comunidade, mas já tem em vista um emprego em Lisboa. "Já fui a uma entrevista de emprego em Lisboa para motorista através do centro", disse, com um sorriso de orgulho.
O director da Comunidade Vida e Paz, em Sobral Monte Agraço, Alfredo Martins, adiantou à agência Lusa que é "muito importante que as pessoas que vivem na comunidade se sintam activos, produtivos e estimulados".
A maioria destas pessoas foram recolhidas da rua pelas equipas do centro e outras foram indicadas por várias instituições. As pessoas chegam com vários problemas psicológicos, de alcoolismo, droga e têm 30 técnicos para os acolher e tratar, disse Alfredo Martins, acrescentado que cada caso merece uma "atenção diferenciada".
O tempo máximo que um utente deve estar no centro é 13 meses, mas há muitos que ultrapassam esse tempo. "Nós não somos um lar, mas as pessoas precisam de paz", comentou o responsável, admitindo que é difícil "romper os laços" com estas pessoas. "Fazemos uma caminhada de relacionamento e depois é difícil a separação. Temos de garantir que as pessoas não saem daqui para o desamor", concluiu.