17.7.08

"Atribuir uma casa não é uma solução mágica para todos os problemas" de quem precisa de ser realojado

Andreia Sanches, in Jornal Público

Não se podem repetir erros como os cometidos em Chelas ou Belavista, dizem especialistas
Conceberam-se bairros demasiado grandes. O realojamento foi feito à pressa e foi pouco acompanhado. Pelo menos em muitos casos. E descurou-se o facto de uma casa não resolver por magia os problemas de populações que viviam em barracas. Especialistas identificam os erros mais frequentes que se cometeram quando se conceberam muitos dos bairros sociais que hoje dão problemas.

1. Arquitectura que destoa
Quem sai de um bairro de barracas para ser realojado em casas da habitação especial tem uma expectativa. "A mudança é vista como a possibilidade de upgrade social", diz Fonseca Ferreira, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento da Região de Lisboa e Vale do Tejo. Contudo, "basta andar pelos arredores de Lisboa para distinguirmos os bairros sociais do resto; distinguimo-los pela arquitectura, pelo volume dos edifícios, pelo urbanismo, há uma marca social", com o estigma que isso acarreta. E quaisquer expectativas de upgrade acabam por sair frustradas, diz. Na Suécia ou na França, este tipo de distinção deixou de existir há anos. "Em Portugal continuamos a apostar numa arquitectura diferenciada das zonas que rodeiam os bairros." É um erro. Há excepções: "Na Alta de Lisboa está a apostar-se numa habitação social diferente, os prédios de habitação social são iguais aos outros." O que é um bom exemplo, nota.

2. Transferir bairros inteiros
"Durante anos defendeu-se que as pessoas deviam ser realojadas em conjunto porque tinham laços comunitários; a experiência veio demonstrar que não é verdade", continua Fonseca Ferreira. Foi outro erro. Deve falar-se com as pessoas a realojar, saber o que querem do local para onde vão viver - o que não tem acontecido, sublinha a arquitecta Helena Roseta - e respeitar os laços familiares que querem manter. Mas quando se transfere um bairro inteiro de barracas para um bairro de prédios corre-se o risco de estar a transferir também "os conflitos, os problemas de droga, de criminalidade que existiam, ou de estar a transferir a memória desses conflitos", diz Fonseca Ferreira. Isabel Guerra, do Centro de Estudos Territoriais, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa, é uma das autoras da proposta de plano estratégico da habitação, já entregue ao Governo. Também considera que o ideal é "diluir" quem é realojado na cidade. "Na nossa proposta não propomos a construção de mais bairros, propomos que, havendo necessidade de realojar, as câmaras recorram ao mercado para comprar ou arrendar casas" que já existem na malha urbana.

3. Homogeneização social
É um erro concentrar num bairro só pessoas com as mesmas características, continua Isabel Guerra. "Todos pobrezinhos, com insucesso escolar, todos com problemas semelhantes. É preciso misturar classes. Uma cidade é feita de miscigenação" e qualquer bairro deve reflectir essa mistura. Nesse sentido, a Alta de Lisboa é vista por vários especialistas como um projecto que pode vir a ser um bom exemplo: "Há mistura social e estou convencida que o realojamento que ali está a acontecer vai correr bem", diz Guerra. Até porque a mistura "induz as pessoas a terem comportamentos diferentes", argumenta Fonseca Ferreira, lembrando que quem está a ser realojado ali é proveniente de bairros problemáticos como a Musgueira. "Mas ali nem se nota o que é a habitação social" e o que é a habitação da classe média que já ali residia.

4. Prédios muito grandes
O realojamento não pode ser massificado, a aposta em grande prédios, em grandes complexos, falhou. "Não podemos repetir erros urbanísticos como Chelas (Lisboa), ou Belavista (Setúbal), não se podem fazer caixotes", diz Fonseca Ferreira. "Os bairros devem ser menos densos, mais pequenos", nota Maria João Freitas, vogal da administração do Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana. "Temos que aprender com os erros e creio que se começa a aprender", acredita.

5. Casa não resolve tudo
O realojamento de uma população que vive em barracas resolve um problema: o da habitação. E pode ser um primeiro passo para a resolução de outros. "Mas atribuir uma casa não é uma solução mágica para todos os problemas", diz Maria João Freitas. "Por vezes, estas famílias acumulam vários problemas" e é preciso accionar outro tipo de intervenção social, seja ao nível da Segurança Social, da Educação ou da Saúde. "Se há problemas de insucesso escolar das crianças, por exemplo, é preciso que a escola da zona esteja preparada", continua. E nem sempre este "trabalho em rede" tem sido feito.

6. Falta acompanhamento
"Todas as experiências mostram que realojamentos planeados e devidamente acompanhados são melhor sucedidos", continua. "Não queremos bairros para negros, outros para ciganos, outros para amarelos", mas misturar comunidades, por exemplo, implica muito planeamento e acompanhamento de técnicos e mediadores, acrescenta Isabel Guerra. E implica ouvir as pessoas, perguntar-lhes o que querem, levá-las a visitar as casas antes de as irem habitar, preparar o terreno, participar na gestão do bairro, como notam Helena Roseta e a socióloga do ISCE Alexandra Castro.

E, no entanto, o que aconteceu com os realojamentos decididos nos anos 90 foi que estes foram feitos "sob pressão" e "não houve capacidade para preparar as pessoas, para envolver quem ia ser realojado", sublinha o padre Valentim Gonçalves, que há muitos anos trabalha em bairros sociais. Os próprios assistentes sociais e outros técnicos desconhecem muitas vezes as especificidades culturais dos habitantes, diz Alexandra Castro.

7. Sem equipamentos
Um bairro não é só casas, é comércio, bancos, correios, equipamentos de lazer, de desporto, de cultura, nomeadamente para os mais jovens, observa Isabel Guerra. "Mas a maioria destes bairros não tem qualquer relação com o meio envolvente, não tem equipamento", continua. A especialista teme que numa altura em que "há pouco dinheiro" a construção destas infra-estruturas continue a ser adiada. "Mas alguns municípios estão a concorrer às verbas do QREN."