José Bento Amaro, in Jornal Público
Norma é inspirada numa outra de 1920; onde agora se lê "nómadas" constava o termo "ciganos". A sua inconstitucionalidade já foi pedida
"Sentimo-nos envergonhados quando alguém lembra que temos de levar a portaria à letra", diz José Manageiro a Se, numa feira, vir um soldado da GNR a revistar as trouxas de um grupo nómada de vendedores, não fique surpreendido. Se numa rua deparar com o mesmo soldado a pedir contas ao mendigo que, sentado no chão, estende a mão à caridade, não se espante. Nem tão pouco se admire caso encontre o mesmo agente da autoridade a irromper por uma casa e a proceder criminalmente contra a locatária, senhora que supostamente ganha a vida a troco de dinheiro por serviços sexuais prestados. Todos estes casos estão previstos legalmente por um regulamento que legitima a acção da GNR sobre nómadas, mendigos, vadios e prostitutas. São obrigações contestadas, mesmo pela própria GNR, mas que não são revogadas.
A portaria legal sobre o Regulamento Geral do Serviço na GNR, que determina este procedimento, é por muitos considerada atentatória, uma vez que discrimina pessoas consoante a sua etnia ou condição social. A portaria não é, como muitos poderiam supor, uma regra do início do século passado, nem tão-pouco mais uma das célebres determinações da governação de António de Oliveira Salazar. Trata-se de um documento legal publicado no Diário da República a 25 de Setembro de 1985.
A Portaria n.º 722/85, no seu artigo 81, reporta-se aos nómadas - uma forma codificada de referir pessoas de etnia cigana. No seu texto, lê-se que a Guarda "deve exercer especial vigilância sobre grupos e caravanas que habitualmente se deslocam de terra em terra fazendo comércio, participando em feiras ou desenvolvendo quaisquer outras actividades próprias da vida itinerante, observando-os nos seus movimentos com o fim de prevenir e reprimir a prática de actos delituosos".
Num outro ponto do mesmo artigo diz-se, a propósito dos "nómadas", que, havendo suspeitas ou queixas por actividades ilícitas ou intimidação à população, as patrulhas "devem efectuar buscas e revistas nas caravanas". Por fim, no terceiro e último ponto, é ainda dito que sempre que um desses grupos se desloque e se saiba qual é o seu destino, então deve ser avisado o comandante do posto dessa área.
Até os GNR estão contra"Essa portaria indicia discriminação injustificada em relação aos portugueses ciganos", considera o coordenador do gabinete de apoio à comunidade cigana do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, Luís Pascoal. Lembrando que já se passaram 23 anos desde a publicação do documento, e que, actualmente, "a democracia já evoluiu e de certeza que nem todos levam à letra a portaria", Pascoal disse ainda que a discriminação a que alude "é praticada pela sociedade não cigana no geral e também pela comunidade cigana em alguns casos"."Queremos uma sociedade de diálogo e de tolerância, e a portaria não se enquadra nesse espírito, pelo que é o momento de a alterar", acrescentou ainda Luís Pascoal.
A própria GNR, através da Associação dos Profissionais da Guarda (APG), critica a portaria que estabelece normas para lidar com ciganos, mas também com vadios, mendigos e prostitutas. "É indigno, não só para os visados, mas também para os profissionais da Guarda, que não se revêem num documento salazarista", disse o presidente da maior associação sindical daquela força, José Manageiro.
"Negróides"
O presidente da APG recorda que tem havido diversas tentativas para reformular o conteúdo da portaria, que é inspirada num texto de 1920 em que os agora "nómadas" surgiam então com a denominação "ciganos". "Sentimo-nos envergonhados quando alguém lembra que temos de levar a portaria à letra e não compreendemos por que razão não se altera uma ordem claramente fascista e ofensiva", afirma ainda José Manageiro, lembrando que o Tribunal Constitucional, que já analisou o pedido de inconstitucionalidade do documento, não considerou o pedido com o argumento de que nem todos os ciganos são nómadas e vice-versa.
O acórdão do Tribunal Constitucional é de 28 de Junho de 1989 e, em 20 pontos, fundamenta a constitucionalidade do artigo 81 do Regulamento de Serviço da GNR. Entre outras considerações, lê-se no acórdão, por exemplo, que "acresce que, se ao nível da vigilância policial, houvesse o propósito de discriminar negativamente os ciganos, então o legislador tanto disporia, nesse sentido, para os ciganos nómadas como para os sedentários".Requerido pela Procuradoria-Geral da República, o acórdão do Tribunal Constitucional teve dois votos a favor da inconstitucionalidade do referido artigo (Messias Bento e Cardoso da Costa fizeram declaração de voto) e quatro favoráveis à sua actual redacção (Vital Moreira, Magalhães Godinho, Nunes de Almeida e Monteiro Dinis).
As referências a questões de etnias ou raças desta portaria inscritas no Regulamento Geral do Serviço da GNR são, de resto, repetidas noutros documentos assinados por esta força. Os relatórios de segurança interna, tal como o PÚBLICO noticiou recentemente, fazem uma clara distinção de raças em gráficos e textos; no relatório de 2004, as pessoas negras aparecem descritas como "negróides".