28.7.08

Contar os trocos e chegar ao fim do dia de bolsos vazios

Kátia Catulo, in Diário de Notícias

Quem vive com 10 euros por dia. Não foi necessário passar fome, nem endividar-me para garantir comida na mesa, mas durante duas semanas alterei todas as rotinas para evitar derrapagens nas minhas contas domésticas. Introduzi mudanças nos hábitos alimentares, abdiquei de cinema e de noites de copos, racionei café e tabaco e, mesmo assim, tive de esticar os trocos para chegar ao fim de cada dia com quase nada .

Viver com 10 euros por dia é tão fácil como fazer contas de cabeça. Basta subtrair todos os caprichos e manter as necessidades básicas. O que tem isso de extraordinário? Afinal, se há quase um milhão de portugueses a fazer o mesmo, porque é que também eu não conseguiria?

Para os que já estão irritados com esta conversa de mulher de classe média, há sempre o consolo de saber que o meu optimismo desmoronou-se ao fim de alguns dias e, duas semanas mais tarde, transformou-se num caso psiquiátrico de angústia. Só quem não está habituada a contar os trocos de cada vez que entra numa pastelaria ou compra um maço de tabaco é que se dá ao luxo de ser tão ingénua como fui até vestir a pele de uma lisboeta que todos os dias tem de esticar uma nota de 10 euros para fazer compras no supermercado, assegurar pelos menos três refeições diárias e ainda fornecer ao corpo doses frequentes de cafeína e de nicotina. Valeram-me dois grandes trunfos para todo este esforço não resultar num enorme fracasso: fui todos os dias a pé da Rua Passos Manuel até ao edifício do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade (Lisboa) e, por isso, não dependi de transportes públicos para me deslocar à redacção. Nem sequer precisei de incluir as contas da água, luz, telemóvel e renda de casa, pois, felizmente, as despesas fixas não foram incluídas neste desafio.

No meu caso, garantir a alimentação foi o suficiente para cumprir os objectivos desta missão. Caso contrário, teria de desistir mesmo antes de começar. Quinta-feira dia 10 deste mês, anotei no meu bloco o que teria de gastar durante os 15 dias seguintes - 150 euros. Entrei no supermercado para fazer as compras da semana e risquei da lista todos os luxos a que nos últimos anos me fui habituando: as bolachas de maçã e canela, a caixa de gelado de chocolate negro, os sumos de polpa de fruta, os biscoitos de arroz tufado para trincar nas horas de trabalho, os iogurtes líquidos do pequeno-almoço, os hambúrgueres de soja, as massas integrais, o vinagre de sidra, o vinho tinto, as fatias de pão escuro com sementes de sésamo, as saladas embaladas e prontas a comer, os bifes de vaca, o açúcar mascavado, o requeijão, a compota de morango, o café de saco e o chá early grey.

O esforço foi recompensado: a conta baixou de 50 para 30 euros, mas, em contrapartida, no frigorífico e nas prateleiras da despensa ficaram só os produtos que asseguram a sobrevivência de qualquer mortal - arroz, esparguete, conservas, pescada congelada, frango, legumes, fruta, manteiga, leite e queijo. Resta ainda excluir os produtos de limpeza e de higiene - que vão ter de ficar para mais tarde -, acrescentar os 6,75 euros que gastei nas 45 carcaças para o lanche e o pequeno-almoço de duas semanas e, por fim, adicionar os 17,25 euros de cinco maços de tabaco que alimentaram o meu vício durante os últimos dias. O orçamento inicial de 150 euros desceu para 65,25 euros, que, divididos por 15, deram a quantia certa para gastar em cada dia - quatro euros e 42 cêntimos.

Para quem até há pouco tempo conseguiu fazer uma refeição fora de casa quase todos os dias, ir ao cinema uma vez por semana ou acabar a noite de sexta-feira no Bairro Alto sem provocar derrapagens no orçamento doméstico, acostumar-me à nova condição foi como tentar manter-me de pé em cima de um carrossel. Os primeiros ensaios foram desastrosos e serviram apenas para mostrar que restava só uma alternativa: virar do avesso todas as rotinas. Na sexta-feira, levantei-me pela manhã e, ainda antes do pequeno-almoço, fui convocada para sair mais cedo em reportagem. Saí de casa a correr e nem me ocorreu que um estômago vazio não aguenta muitas horas sem protestar. Mesmo assim consegui almoçar por 3,25 euros e lanchar por 1,80 - foi o suficiente para fracassar ao segundo dia. O exemplo serviu para não voltar a repetir o mesmo erro.

Uma jornalista quase nunca tem um dia igual ao outro e por isso passei a antecipar os imprevistos: cozinhar de véspera as refeições para o dia seguinte; levantar mais cedo para poder tomar o o pequeno-almoço em casa, dispensar o metro e o autocarro e andar a pé na maioria das vezes em que precisei de me deslocar, reduzir para metade a cafeína - de cinco para dois cafés após lanche e almoço -; racionar o tabaco e passar fumar uma média de seis a sete cigarros por dia, menos cinco do que o habitual; abdicar de cinema, praia, noites de copos ao fim-de-semana e restaurantes. A partir daí, as moedas que sobraram no meu bolso foram mais do que suficientes para não passar fome ou ter de pedir ajuda ao Banco Alimentar ou a qualquer outra instituição de solidariedade. Pior seria se fosse uma fiel cliente dos farmacêuticos, se a máquina de lavar deixasse de trabalhar ou se a janela da sala se estilhaçasse. Qualquer um destes pequenos infortúnios bastaria para deitar por terra o esforço de duas semanas.

Tudo correu como planeado e até houve oportunidade para me espreguiçar nas esplanadas durante os dias de folga. Só da primeira vez, é que foi preciso um pouco mais de sacrifício para subir a pé a do Largo de Santa Bárbara até ao miradouro da Graça. Em 20 minutos cheguei ao destino, mas antes de cortar a meta já me sentia como uma criatura perdida num deserto. É impossível enfrentar 32 graus de uma tarde de Verão sem ter ao lado uma garrafa de água fresca para recuperar o fôlego. O bebedouro público do jardim teria tornado o meu problema insignificante não fosse o azar de estar tão seco como a minha garganta.

Contei os trocos e concluí que daria para consumir alguma coisa na esplanada. "Quanto é um café e uma água?", perguntei a medo. A empregada demorou a responder e até fiquei com a sensação de que me olhou de lado como se fosse uma pelintra no meio de turistas a beber imperais e devorar tostas mistas. A resposta fez-me engolir em seco: "Um café é 1, 50 e uma água sem gás um euro." Tive vontade de me levantar e procurar outro lugar, mas a verdade é que me faltou coragem para aguentar a humilhação. Optei então por continuar e restringir ainda mais os meus gastos até ao fim do dia.

Tudo tem o seu lado positivo e também esta experiência resultou noutra lição que me serviu de emenda. Desde essa tarde de calor, a capital transformou-se numa cidade cercada de fronteiras que não poderia atravessar a não ser que usasse os transportes públicos. Houve alturas em que utilizei a rede do metropolitano mas, na maioria das vezes, circunscrevi-me apenas aos lugares possíveis de se percorrer a pé. Circulei pelas ruas como se Lisboa tivesse a dimensão de uma aldeia.

Viver com 10 euros todos os dias é um esforço que se suporta melhor durante a semana, mas que se torna demasiado penoso aos sábados e domingos, quando o trabalho não nos ocupa a cabeça. Dar tempo a quem não tem dinheiro é algo parecido como oferecer um presente envenenado. As horas vagas serviram para pensar na minha condição - que felizmente é temporária - e na de todos os outros 960 mil portugueses que têm de estar sempre a contar os trocos até chegar ao fim de cada dia. E na manhã seguinte recomeçar outra vez a contagem.

Acaba por ser tão desgastante que é preferível ficar em casa, entretida com os livros e as séries televisivas que, em vez de me distraírem, serviram para afundar-me cada vez mais nas minhas dúvidas existenciais. De que vale andar a trabalhar de segunda a sexta se depois não sobra dinheiro para de vez em quando almoçar um peixe grelhado na marginal de Alcochete, beber um copo depois do cinema ou planear um destino de férias? Provavelmente terá sido também a ausência de nicotina e de cafeína que contribuiu para obscurecer o meu estado de espírito. Se tivesse de vestir por mais alguns meses a pele de quem vive com 10 euros, estaria em breve a tomar um antidepressivo para aguentar a rotina. Ou talvez não. Só depois de saber qual a comparticipação do Estado nos medicamentos é que teria de decidir se podia ou não engolir um comprimido antes de adormecer.