16.7.08

Pavilhão abriga quem fugiu da Quinta da Fonte com medo

Andreia Sanches, in Jornal Público

Cerca de 200 pessoas estão a dormir em colchões e não querem voltar ao bairro que um estudo de 2007 classificava como "barril de pólvora"

Não houve nenhuma cheia nem nenhum furacão a desalojar famílias no concelho de Loures. Mas parece. Ontem, pouco depois da meia-noite, dezenas de pessoas começaram a chegar ao pavilhão gimnodesportivo de São João da Talha, cedido pela câmara municipal. E cerca de 200, incluindo bebés e crianças, dormiram no chão, entre espaldares e bolas de basquetebol. A Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) disponibilizou colchões e lençóis. Ontem de manhã, alguns miúdos brincavam, as mães reclamavam porque não tinham nem leite nem água para dar aos filhos, outras dedicavam-se a varrer o recinto. Sentada num dos colchões encostados à parede, uma menina de cinco ou seis anos usava um pedaço de cartão como se fosse um leque, para se refrescar. Com a hora de almoço a chegar, o calor era cada vez maior. E o cansaço. "As pessoas pouco dormiram", queixava-se Cidalina Miguel, 47 anos, uma das moradoras do bairro da Quinta da Fonte, em Loures, onde na semana passada foram filmadas as cenas de tiroteio que chocaram o país. Depois dos tiros, cerca de 50 famílias ciganas decidiram abandonar o bairro.

Nas últimas noites, muitas dormiram em carros, na rua. Ontem foram encaminhadas para o pavilhão. Não houve nenhuma cheia em Loures. Desta vez foi o medo a fazer desalojados. José Garcia, 63 anos, pai de dez filhos a avô de 24 netos, também dormiu num colchão. "Fui operador de máquinas, trabalhei 25 anos numa empresa, tenho mais de 30 anos de contribuições para a Segurança Social, tenho uma filha formada em Direito, um que é gerente de lojas da TMN, outro que está no ramo automóvel, estamos integrados. Estas situações denigrem a imagem dos ciganos, mas queremos paz.

Mas as pessoas têm medo de voltar ao bairro." "Ninguém volta, porque ninguém arrisca ver um filho morto, ou um irmão morto", acrescentava Joaquim Sá, 32 anos, pastor evangélico. Os ciganos dizem que a comunidade de etnia africana do bairro os persegue e que têm receio de voltar. A câmara diz que há cerca de 30 casas que foram vandalizadas nos últimos dias por "grupos minoritários que actuam ao cair da noite" e que só depois de recuperadas poderão voltar a receber as famílias. Membros de associações culturais do bairro, de origem africana, já disserem que desconhecem quem são os autores de tais actos. E garantem que a paz é possível.

Mas, para já, "é preciso criar condições" para que quem saiu do bairro por não sentir segurança regresse, explicou Luís Pascoal, do Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. Uma mulher, de olhos rasos de lágrimas, dizia baixinho: "Destruíram-me a casa toda."

Alerta feito em 2007

Edmundo Martinho, presidente do Instituto de Segurança Social (ISS), garantiu que passarão a ser fornecidas três refeições diárias no pavilhão. Técnicos do ISS e da câmara passaram o dia a chamar cada uma das famílias para avaliar a situação de cada uma. Enquanto isso, socorristas da CVP iam atendendo os casos mais delicados. "Alguns bebés com febre, uma senhora que é diabética e que deixou os medicamentos em casa, mas que diz que tem medo de voltar ao bairro para ir buscá-los", explicou Francisco Canhoto, da CVP.

Edmundo Martinho, que chegou de manhã cedo ao pavilhão, fez saber que a Segurança Social foi chamada porque esta é "uma situação de crise". Nos próximos dias, continuou, deverá arranjar um "alojamento temporário com a dignidade suficiente" onde as famílias que não tenham outra solução possam ficar "durante os próximos três a quatro meses". Será ou em Loures ou nos concelhos vizinhos. "Não têm que ser obrigatoriamente casas, pode ser uma unidade residencial." As casas vandalizadas nos últimos dias serão recuperadas. E os três a quatro meses ao longo dos quais as famílias ficarão fora da Quinta da Fonte serão aproveitados para "trabalhar no bairro", preparar o regresso das famílias, criar condições para "que isto não se repita". Só há uma possibilidade: "O regresso das famílias ao bairro", voltou a dizer o presidente da câmara, Carlos Teixeira. As investigações sobre a origem dos tiroteios continuam. A Polícia Judiciária está a seguir várias pistas.

O medo e insegurança sentidos na Quinta da Fonte não são de agora. Foram sinalizados num estudo do Observatório da Imigração de 2007, que descrevia o bairro como "um barril de pólvora". Nele, alertava-se para a necessidade de intervir num local que se tornou "um monstro de problemas" relacionados com a "insegurança, carências económicas e sociais das famílias e jovens e vários conflitos de vizinhança". Com R.D.F.

Como as TV obtiveram imagens dos incidentes

Videoamadores pediram dinheiro pelos seus clips

A SIC pagou "as despesas" dos autores das imagens do tiroteio na Quinta da Fonte que mostrou em primeira mão na sexta-feira; a RTP recusou pagar por um outro videoamador, mas sábado exibiu os clips da véspera da SIC; e a TVI passou, domingo, as imagens rejeitadas pela RTP.
Os três canais generalistas mostraram imagens captadas por amadores, em mais um capítulo da aliança entre os media tradicionais e os chamados cidadãos-jornalistas. Sexta-feira, a SIC foi contactada pelos autores do vídeo que mostrava a troca de tiros no bairro de Loures, e utilizou-as no Jornal da Noite: "Não nos limitámos a passar as imagens, passámos o dia na Quinta da Fonte, e elas foram enquadradas como o ponto alto de uma violência [que já se sentia desde quinta-feira]", disse Alcides Vieira, director de informação da SIC.

"Nesses casos, a estação suporta as despesas, até de transporte, das cassettes da entrega, por iniciativa da própria SIC." Nas imagens de todos os canais apenas a etnia cigana surgia em actos violentos. "Quem as fez não teve oportunidade de mostrar a outra parte", diz Vieira. No sábado, a RTP recebeu uma proposta por imagens dos confrontos na Quinta da Fonte, pelas quais pediam "bastante dinheiro", diz o director de informação José Alberto Carvalho. Foram rejeitadas por se considerar que "não eram suficientemente ilustrativas". "[E] porque não acordámos as condições do seu uso."Essas imagens serão as mesmas que foram para o ar no Jornal Nacional de domingo da TVI, após um processo conduzido por João Maia Abreu, director de informação do canal, que não esteve contactável até ao fecho desta edição. J.A.C.