Isabel Leiria, in Jornal Público
Problemas de integração estão há muito diagnosticados. Especialistas dizem que os realojamentos foram feitos sem critério
Cerca de 90 por cento da população da Quinta da Fonte recebe o Rendimento Social de Inserção 90% a A situação na Quinta da Fonte - o bairro de Loures onde se registaram violentos confrontos entre moradores na quinta e sexta-feira - continuava ontem controlada por um contingente policial entretanto reforçado. Mas os incidentes deslocaram-se por algumas horas na madrugada de ontem para o bairro da Quinta da Mós, em Fetais, no mesmo concelho.
Várias famílias ciganas, receosas de represálias, abandonaram as suas casas e tentaram entrar à força em habitações vazias da Quinta das Mós, que também se destinam ao realojamento. De acordo com o comandante da PSP de Loures, Resende da Silva, a situação foi rapidamente resolvida, com os agentes da polícia a evitar a ocupação das casas, relata a Lusa. A vontade de algumas famílias ciganas de sair do bairro não é nova, revelou ontem o presidente da Junta de Freguesia da Apelação, José Alves, onde se situa o bairro da Quinta da Fonte: "Nos últimos anos têm solicitado à câmara alternativas noutros locais. Os moradores de etnia cigana são os que mais pedem, mas a câmara não pode, porque não tem casas para lhes dar", disse à Lusa, acrescentando que as habitações da Quinta das Mós estão "praticamente todas distribuídas" no âmbito do Programa Especial de Realojamento.
Há muito tempo que os problemas de integração na Quinta da Fonte estão diagnosticados. Num estudo de 2004 sobre a inserção social dos jovens deste bairro, feito por Otávio Raposo (da Universidade Nova de Lisboa) para a Câmara Municipal de Loures, o investigador escrevia que as pessoas aí realojadas "foram espalhadas pelos diversos edifícios sem qualquer critério". De um momento para o outro, a população da freguesia da Apelação duplicou.
"As redes familiares e de vizinhança que existiam nos antigos bairros [de barracas que se localizavam em alguns dos acesso construidos para a Expo 98] foram completamente ignoradas durante o processo de realojamento", lê-se no estudo. "Encontramos num mesmo prédio famílias ciganas, africanas e portuguesas provenientes de diversos bairros, situação que teve como consequência o aniquilamento das várias redes de suporte económico e sentimental que facilitavam o seu dia-a-dia", continua Otávio Raposo. "Além disso, não houve a preocupação de explicar aos moradores como funcionavam os recursos existentes nas suas novas casas.
"Reforço da segregaçãoRahul Kumar, sociólogo da Númena, Centro de Investigação em Ciências Sociais e Humanas, considera que os poderes públicos "devem estar atentos".
"Poderíamos perguntar por que é que se aceita o pedido de uma família cigana para mudar de bairro e não o de uma velhinha que já foi assaltada duas vezes", continua. Mas "é preciso estar atento" às especificidades de determinados grupos étnicos. Por exemplo, "segundo a lei cigana, se há um conflito entre duas famílias, aquela que perde deve sair do bairro", diz Kumar. "Os poderes públicos não têm que compactuar com isto, senão teríamos um 'direito' dentro do Estado de direito. Mas ter sensibilidade para analisar caso a caso com bom-senso." Loures até tem sido "um bom exemplo", com a criação do Gabinete de Assuntos Religiosos e Sociais Específicos.
Kumar foi um dos investigadores que fez um relatório financiado pela Comissão Europeia onde se tentava avaliar a inclusão das comunidades ciganas, que representam 40 por cento da população do Bairro da Quinta da Fonte (a que se juntam outros tantos moradores naturais de países africanos). Algumas conclusões: em Portugal, o realojamento "não leva em linha de conta as especificidades culturais dos diferentes grupos étnicos e não promove a coexistência intercultural, pelo contrário reforça a segregação". Estes bairros "estão mal integrados no tecido urbano" e longe do centro das cidades. O país, conclui, tem que apostar mais na integração.
Os bairros sociais pecam frequentemente pelo mesmo: empurraram as pessoas para fora do centro, têm poucas estruturas, "faltam muitas vezes um parque infantil, uma piscina, e problemas como o desemprego não foram atacados", continua Kumar. Fernando Roque Oliveira, responsável pelo Observatório da Proliferação de Armas, da Comissão Nacional Justiça e Paz, já tinha dito algo semelhante no sábado, em entrevista à Lusa. Conflitos como os dos últimos dias estão relacionados "com a qualidade de vida das pessoas, com o fosso muito grande entre ricos e pobres" e com as condições de realojamento. É preciso ter cuidado, por exemplo, com o realojamento em altura (prédios de vários andares); nesta matéria "tem havido muitos erros e a Quinta da Fonte é um deles", sublinhou.Em declarações à TSF, o ex-Presidente da República Jorge Sampaio defendeu a necessidade de haver programas de integração social e disse não estar surpreendido com os tiroteios ocorridos no Bairro da Quinta da Fonte: "Temos problemas de integração complexos, nomeadamente em certos bairros da periferia de Lisboa, para não falar do Porto e de Setúbal, o que significa que está por fazer a integração dessas pessoas."
com Andreia Sanches
Março de 2007
A polícia cerca e fecha o Bairro da Quinta da Fonte, concelho de Loures, na sequência de confrontos. São feitas cargas policiais e disparados tiros para o ar. Um agente da PSP fica ferido, um carro é destruído pelas chamas
Julho de 2007
Um ataque a uma discoteca ilegal da Quinta de Santo António, em Camarate, também no concelho de Loures, acaba em tiroteio. Um jovem é morto a tiro durante a rixa entre dois grupos rivais - um da Quinta do Mocho (Sacavém) e outro da Quinta da Fonte (Apelação).
Novembro de 2007
Uma mega-operação de 250 polícias na Quinta da Fonte resulta na detenção de dez pessoas e na apreensão de 26 armas. O objectivo é dar cumprimento a 40 mandados de busca a habitações e, segundo a PSP, a proporcionar um sentimento de segurança à população. As queixas por distúrbios, disparos e apedrejamento de transportes públicos são frequentes no bairro.
Abril de 2008
À volta de uma centena de agentes da PSP cercam quatro bairros de Lisboa e Loures (Padre Cruz e Horta Nova, em Carnide, Quinta da Fonte, em Sacavém, e Serra da Luz, na Pontinha). Levam mandados de busca domiciliária, e procuram pequenos traficantes. São apreendidas armas e droga.