6.6.08

Consenso deixou de fora os problemas mais graves da alimentação mundial

Ana Fernandes, em Roma, in Jornal Público

O exame aos compromissos anunciados na capital italiana será feito no próximo encontro do G8 e à mesa das negociações de Doha


Foi o consenso possível, embora menos ambicioso do que se desejava. A declaração final ontem assinada na Cimeira da Alimentação em Roma, que quase bloqueou devido à oposição de alguns países da América do Sul, acabou aprovada. Mas há quem duvide dos seus resultados práticos por não responder cabalmente a alguns dos maiores problemas que geraram esta crise alimentar.

Primeiro os biocombustíveis, depois os subsídios dos países ricos, os bloqueios económicos e finalmente a palavra "restritiva" a que a Argentina se opôs quando se falava de medidas que criam volatilidade nos preços - devido às tarifas que impõe às suas exportações para proteger os consumidores - foram factores que quase bloquearam a cimeira.

Mas, no final, horas depois do previsto, a declaração foi aprovada. Nela consta o compromisso de tentar resolver algumas das causas da crise alimentar mas a sua redacção é suficientemente inócua para que o vínculo seja fraco.

Mas é um ponto de partida e o sucesso das intenções depende da adopção das políticas certas. A confirmação da vontade de alguns dos principais actores pode ser dada já no início de Julho, no Japão, na reunião do G8. O encontro tem a alimentação e os combustíveis como dois dos principais tópicos e o mais importante é responder à escalada do petróleo, que explica parte do que está a acontecer. Mas não explica tudo. O desinvestimento na agricultura nas últimas décadas culminou nesta situação mas já era uma pedra basilar de muitos dos problemas de fome no mundo.

Por isso, a expectativa em Roma é que o G8 confirme os compromissos de que os seus líderes tanto falam. O receio é que a extraordinária resposta dada à crise, com a transferência de milhares de milhões para as organizações internacionais, não tenha continuidade no futuro. Porque as coisas não se resolvem num só ano.

"Os países assumiram aqui compromissos mas temos de ver como estes serão traduzidos na realidade, porque é necessário muito mais do que tem sido anunciado, o esforço tem de continuar", salientou Lennart Bage, presidente do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola.

E há ainda outra questão fundamental: "Muitos países estão a divulgar os apoios que vão dar ao desenvolvimento - Espanha anunciou recentemente a doação de 500 milhões de euros e França de mil milhões -, mas o que é importante saber é se esse dinheiro é novo ou se provém da transferência de outras medidas já previstas, em que se alteraram prioridades", refere Alexander Woolcombe, da organização não-governamental Oxfam.

No total, foram anunciados financiamentos, por parte de países e instituições, de 7800 milhões de euros, embora nalguns casos sejam doações previstas para mais do que ano.

Doha na encruzilhada

Outro dos exames às boas intenções anunciadas em Roma terá lugar em Setembro, durante as negociações da ronda de Doha. Deste encontro não se esperam grandes sucessos, sobretudo porque as expectativas são muito díspares.

Enquanto alguns consideram que esta era a oportunidade para os países ricos se comprometerem a reduzir os subsídios que distorcem o mercado dos produtos agrícolas, em cima da mesa está uma proposta de liberalização que pode também não ser favorável aos países pobres.

"Doha não pode ignorar que tem de diferenciar a situação dos países, os produtos que eles sabem produzir, pois temos de os ajudar a que estes produtos cheguem com qualidade à Europa, por exemplo, porque eles vêem as nossas exigências de protecção alimentar como uma forma de proteccionismo, temos de saber responder a isto", disse ao PÚBLICO Jaime Silva, ministro da Agricultura.

"As negociações na Organização Mundial de Comércio não vão responder aos problemas se não incluírem grande flexibilidade, que não é o que está em cima da mesa, pois a liberalização tem, ao contrário do que se defende, criado grandes problemas à capacidade produtiva dos países pobres, que deixam de conseguir competir com o que lhes chega ao mercado", defende Alexander Woolcombe. "Tem de haver margem de manobra para que os países possam defender os próprios interesses."