in Jornal de Notícias
A crise vai "penalizar de forma significativa" a estratégia do Governo, admite já Vieira da Silva, que avisa: o PS terá de "trabalhar muito" para voltar a ter maioria. E nem Alegre escapa às críticas
David Dinis [david.dinis@jn.pt] e Paulo Martins [pmartins@jn.pt]
O Estado social não é tão débil como se tem escrito, garante Vieira da Silva. Um ministro preocupado com as consequências da crise, mas que garante que o rumo do Governo não vai mudar uma linha, porque as políticas sociais nunca deixaram de figurar no topo das suas prioridades.
A eleição de Ferreira Leite para líder do PSD complica mais a vida ao Governo?
Julgo que não. Sem querer comentar o resultado, do ponto de vista da imagem com que o PSD se vai apresentar ao país esta eleição reforça a ideia do regresso ao passado. A receita das políticas seguidas para resolver a crise orçamental – de que Manuela Ferreira Leite foi uma das protagonistas principais – teve como resultado um mergulho na recessão.
O discurso de Ferreira Leite sobre a crise social deixa o Governo mais alerta?
Conheço bem a situação social do país. A minha preocupação é agir e dar as respostas adequadas, para combater as consequências da nova situação [económica]. Não creio que a adesão de Ferreira Leite a este cenário mude a situação.
A crise económica internacional, que começa a aproximar-se de Portugal, é injusta? Se entende que sim, é injusta para quem?
As crises são sempre injustas. Não conheço nenhuma justa, pelo menos do ponto de vista económico. Obviamente que a crise é principalmente injusta para aqueles que sofrem as suas consequências mais pesadas, aqueles que estão do lado negativo das assimetrias que existem em todo o Mundo.
E para o Governo esta crise é injusta, tendo em conta o trabalho realizado e a expectativa de que o final do mandato fosse menos “pesado”?
Esta crise não foi provocada pelo Governo. Não era esperada por grande parte dos analistas e observadores. É uma crise complexa – ao mesmo tempo, muita coisa está a acontecer e a generalidade é negativa. Obviamente que o Governo tinha – e tem – uma estratégia, penalizada de forma significativa por esta situação internacional.
Que custo pode ter? Há muitas alertas, dentro do próprio PS, de que com esta conjuntura internacional a atingir Portugal a maioria absoluta se torna praticamente impossível de reconquistar. Teme que esse cenário se concretize?
Em eleições, nunca há nada garantido. Tenho a convicção de que, seja qual for o desenvolvimento da conjuntura, o PS terá sempre de trabalhar muito para voltar a merecer a confiança dos portugueses, na dimensão registada em 2005. Julgo que seria hipocrisia dizer que uma situação económica mais desfavorável, uma situação internacional muito mais difícil, não tem reflexos potenciais no comportamento do eleitoral. Naturalmente, é possível que isso aconteça. Cabe-nos conduzir a nossa actuação política na defesa dos interesses do país. Não é a primeira vez que o digo: não tenho ingenuidade política ao ponto de dizer que políticas mais expansionistas ou mais rigorosas não têm influência no eleitorado. É óbvio que têm. Isso está estudado, há teses de doutoramento sobre a questão. A relação continua a existir, mas também é verdade que hoje o eleitorado é cada vez mais informado. Julgo que está particularmente atento à utilização de instrumentos de política para fins muito imediatistas, de tipo eleitoral. Numa situação difícil, como a que o país vive, se o Governo do PS enveredasse por esse caminho – não vai enveredar – não julgo que tirasse vantagens significativas. As pessoas, no momento de apreciar a actuação do Governo durante esta legislatura, vão avaliá-la no seu todo e tomar em linha de conta se o Governo cedeu a qualquer impulso mais eleitoralista, no sentido de aplicar medidas que não deveriam ser aplicadas, mas seriam aplicadas apenas porque estaríamos a poucos meses das eleições. Acho que esse caminho não paga. Pelo menos, não paga como pagou noutras alturas.
Mário Soares publicou esta semana um artigo onde alerta para o facto de o PS estar muito pressionado à Esquerda e à Direita. Lança gritos de alerta sobre pobreza, instabilidade social, situação da classe média, e diz que a Esquerda está a capitalizar a insatisfação e que, à Direita, os candidatos à liderança do PSD também o fazem. O PS tem escapatória, face a este cerco?
A situação de o PS ser pressionado pelos partidos à nossa direita e pelos outros partidos do hemiciclo não é nova na política portuguesa. Se há alguém que conhece bem o que é governar Portugal com essas pressões é Mário Soares. Ele sabe-o bem e, por certo, que o tem presente na memória.
Isso acontece porquê? Porque o PS tem vindo a governar ao Centro?
Não é isso que estou a dizer. Estou a dizer que em situações, como já aconteceu mais do que uma vez, em que ao PS cabem responsabilidades de recuperar ou atingir equilíbrios fundamentais para a nossa independência...
Está a falar do Governo de Mário Soares nos anos 80.
Exactamente. Sempre que essas situações aconteceram, o PS foi atacado como estando a fazer políticas de Direita e atacado pela Direita por não ser um partido de Direita. Ao contrário do que dizem alguns, não faz políticas de Direita, como penso que é relativamente fácil de demonstrar. A vida política, ao longo desta legislatura, tem mostrado que um conjunto de opções - que considero absolutamente fundamentais para que a margem que o nosso país tem de ter para crescer de uma forma equilibrada, justa e progressiva, possa acontecer - tem sofrido um ataque sistemático por parte dos partidos que se sentam à esquerda no hemiciclo de S. Bento. Não é nada de novo; é algo que sempre fizeram. É uma incompreensão que faz parte da sua matriz.
Diz-nos que Mário Soares saberá bem o que é governar com pressões à Esquerda e à Direita. Nesse Governo de Mário Soares, entre 1983 e 85, as pressões existiram. Mas o PSD acabou por ganhar as eleições legislativas seguintes e, pouco tempo depois, a primeira maioria absoluta. Não estará Mário Soares a alertar...
Isso é levar longe de mais as comparações históricas! Estamos a falar de um quadro politico-partidário muito diferente do que existia na altura, de uma situação económica e social bem distinta, de Portugal estar nas vésperas de entrar na União Europeia ou já fazer parte dela. A situação é muito diferente. Há uma batalha que travámos e continuaremos a travar: a batalha de mostrar aos portugueses, em particular ao eleitorado do PS, que a condução de políticas de reposição da sustentabilidade do nosso Estado Social era a única resposta de Esquerda. Não conheço outra.
Soares deixa uma frase: “quem vos avisa, vosso amigo é”. O PS, de que é dirigente, aceita o aviso e o apelo à acção?
Subscrevo o que já ouvi a alguns camaradas da Direcção do PS: nenhuma palavra de Mário Soares deixa de ser escutada no partido. As preocupações que ele tem relativamente à situação social no nosso país são justas. Corremos o risco de assistir a uma grande mistificação: onde e quando é que o Governo do PS deixou de reconhecer as dificuldades sociais do país, os níveis de desigualdade, os níveis de pobreza? Aconselho-vos: consultem o Plano Nacional para a Inclusão. O retrato da situação, relativamente a 2004, está aí sintetizado. É um documento aprovado pelo Conselho de Ministros.
Há dados de 2005 e 2006, que revelam algumas evoluções – já lá vamos. Para fechar esta parte: juntar-se-ia a Manuel Alegre, ao Bloco de Esquerda e aos Renovadores Comunistas no encontro da próxima terça-feira, se fosse convidado?
Naturalmente que não, porque há um mundo que me separa das posições políticas do Bloco de Esquerda. Não conheço em detalhe os documentos que suportam essa iniciativa, mas tenho ideia de que tem como um dos alvos as políticas governamentais.
Como se justifica, então, que Manuel Alegre lá esteja?
A presença do deputado Manuel Alegre em iniciativas políticas, é ele que a pode explicar. Repare: há uma diferença entre manifestar uma preocupação sobre as dificuldades que o país vive, a situação social...
Como fez Soares...
Como faz o Governo! Não me sinto nada penalizado, desse ponto de vista. Outra coisa é ter uma leitura de que a política governamental agrava essa situação, como sistematicamente o BE tem feito, muitas vezes faltando à verdade mais elementar. A sua pergunta é meramente especulativa, por certo...
Se um destacado deputado do PS se junta a um partido que tem posições críticas em relação ao Governo, isso só pode ser interpretado como uma atitude fraccionista...
O PS não utiliza essa expressão, que não faz parte da minha maneira de olhar a política. O deputado Manuel Alegre resolveu tomar aquela iniciativa, está no direito dele.
A questão é o eleitorado socialista de que falava há pouco, notando que o Governo tem de lhe lembrar que esta era a única via de Esquerda. Não arrastará Manuel Alegre neste protesto uma parte do eleitorado que conquistou nas eleições presidenciais?
Não sei. A situação é muito diferente. Tenho a certeza de que o eleitorado do PS e os militantes – é bom que tenham as dúvidas que entendam, é bom que as expressem, que isso faça parte da nossa vivência democrática – entendem e acompanham a actividade governativa numa preocupação fundamental: colocar os interesses gerais acima dos particulares. Essa tem sido a nossa preocupação mais presente em todas as medidas políticas. Fazemo-lo porque nesta situação de mudança em que vivemos é o que Portugal necessita e o que serve principalmente os interesses dos sectores sociais representados pelo PS, sectores populares, como trabalhadores por conta de outrém, que são a base social do partido, embora ele seja naturalmente interclassista. A experiência que estamos a viver mostra-nos que a defesa dos equilíbrios fundamentais e da sustentabilidade do nosso modelo económico e social serve principalmente esse nosso eleitorado.
É possível ao PS – à Direita, o cenário é um pouco diferente – governar sem maioria absoluta?
O PS foi o único partido em Portugal que governou uma legislatura inteira sem maioria absoluta.
Mas teve notórias dificuldades, sobretudo quando continuou... E teve de encerrar a experiência, provavelmente porque não tinha condições políticas para continuar.
Essa leitura é... complexa. Julgo que não vale a pena voltar a essa questão.
Foi o primeiro-ministro da época que disse que não tinha condições políticas para continuar.
Não nos esqueçamos de que o PS teve, na sequência desse acto eleitoral, uma das maiores votações de sempre. Não quero com isto diminuir a importância de uma maioria absoluta. Nem sempre a maioria absoluta permite fazer as mudanças de que o país precisa. Temos o exemplo da última legislatura: sabemos o que aconteceu com uma maioria absoluta, ainda que de dois partidos. Em fases de mudança, em que é necessário desenvolver reformas intensas, como aconteceu nesta legislatura, ter apoio parlamentar maioritário é condição fundamental para o equilíbrio.
Com a crise, o país começou a falar muito de novos pobres e há até quem, como Santana Lopes, garanta que voltou a haver fome em Portugal. Acredita neste cenário?
Aquilo que posso dizer é que Portugal tem hoje uma resposta a situações de pobreza mais extrema, uma rede de apoios e de acompanhamento da situação das famílias incomparavelmente superior à que possuía há dez ou há 20 anos atrás. As questões da fragilidade que atinge algumas famílias – que as levam a recorrer aos apoios públicos – têm condições de ser respondidas. Portugal tem condições para impedir que situações de carência alimentar e outras que atinjam famílias. Temos não só um sistema de protecção social que garante um mínimo de condições, como toda uma rede de apoios de natureza mais eventual que reforça essa garantia. Isso é absolutamente reconhecido por todos, inclusivamente pelo relatório que foi apresentado pela União Europeia.
Mas quando se fala de novos pobres tem a ver com um novo cenário: a crise alimentar, o abrandamento económico e a fragilidade – ou não – da nossa classe média. A classe média não é muito frágil, não está muito exposta a situações de crise?
Nós temos um problema em Portugal que é saber o que é a classe média. É aquele sítio onde quase todos julgam que se situam, mas provavelmente não estão. Nós temos uma assimetria de rendimentos excessiva, cujo combate tem de ser uma das prioridades de qualquer Governo. Agora, vivemos até há bem pouco um cenário em que as situações de fragilidade social eram principalmente de permanência e reprodução geracional.
Isso mudou?
Há sinais de mudança. Não na natureza, mas na dimensão da nossa estrutura económica e social. Nós estamos a viver uma reestruturação económica como provavelmente nunca vivemos. Estamos a mudar um pouco de paradigma, mas isso não é algo que possamos fazer em seis meses ou em dois anos, demora um pouco mais a concretizar. E isso provoca uma mobilidade social que não existia há uns anos atrás. É uma realidade nova, que já foi identificada há uns anos. A coexistência entre a fragilidade social tradicional e uma nova fragilidade, mais urbana, mais metropolitana, está presente nas políticas públicas desde há um par de anos.
Em que medida é que essas políticas são suficientes? Bruto da Costa sustenta que as medidas sociais não têm passado de paliativos, no combate à pobreza. É uma crítica mais estrutural ao sistema. Concorda?
Tenho a convicção que os problemas que vivemos têm a ver com questões estruturais e não conjunturais, mas onde as questões se colocam é na procura de alternativas. É muitas vezes fácil as pessoas coincidirem na identificação da situação, mas quando se chega ao momento da avaliação das políticas muitas vezes as diferenças podem ser mais significativas. Quando nos colocamos na posição de dizer que este sistema está errado, é preciso perceber de que outro sistema estamos a falar.
Podemos discutir um sistema de maior intervenção do Estado?
O que a experiência histórica – julgo que não estou sozinho nesta apreciação – nos tem mostrado é que no que toca à diminuição da pobreza e das dificuldades de desenvolvimento essas experiências, na generalidade, conduziram a resultados negativos. E muitas vezes dramáticos.
Os dados mais actuais do INE, mostram que de 2005 para 2006 ocorreu uma ligeira diminuição do risco de pobreza. Mas acentua que as melhorias aconteceram antes da redistribuição pelo Estado. Prenderam-se mais com a aceleração da economia. Agora, em desaceleração, como vai ser?
É sempre bom quando existe uma diminuição da taxa de pobreza, nem que seja de um ponto percentual – são menos 100 mil pessoas por cada ponto. Um pouco mais difícil é tirar ilações de natureza mais estrutural nas variações de apenas um ano. Olhemos para os dados que conhecemos, que são dados de uma década, europeus. Aí verificamos que o que fez reduzir a pobreza foi principalmente o papel das políticas sociais. Se em 1995 as transferências sociais reduziam a pobreza em 14%, já em 2006 a redução foi em 28%. Dobrou o peso! É inferior ainda ao que alguns países fazem, mas é superior a outros. Ao contrário do que dizem alguns analistas, nestes dez anos a evolução do Estado social em Portugal teve estas consequências. Agora, é desejável que possamos fazer uma redução pelos dois caminhos: em termos de rendimentos e de transferências sociais. Reduzir só por um lado é mais difícil. Se bem que, ao nível da taxa de pobreza, quando consideramos apenas os rendimentos primários, antes das transferências, a nossa taxa é relativamente semelhante à de outros países europeus.
O que faz supor que as nossas políticas de redistribuição não sejam eficazes.
Não são tão eficazes como nos países mais ricos. Há uma relação directa: quanto maior é o peso da política social de um país, maior é a sua eficácia na redução da pobreza; e quanto maior é a riqueza do país, maior é, em geral, a capacidade que tem para dirigir as transferências...
...Isso em tempo de crise é querer sol na eira e chuva no nabal.
Não creio. Obviamente que é mais difícil, mas se olharmos para o que tem sido a evolução da despesa social nestes anos, é a única componente da despesa pública que sobe. E sobe, em particular a mais orientada para a correcção das desigualdades mais profundas. Entre 2004 e 2008, as transferências sociais de solidariedade – que têm a ver com o contributo dos impostos – crescem cerca de um ponto do PIB – e atingem 4% do PIB. Estou a falar dos complementos sociais que existem nas pensões, do complemento social para idosos, do rendimento social de inserção, do abono de família. Esse crescimento tem sido sistemático, mesmo num contexto de consolidação orçamental.
À Esquerda, há algumas pessoas a criticar o Governo pela fixação nos objectivos do défice. Tem sido mais um instrumento ou um fim em si mesmo?
O Governo teve necessidade de fazer um aumento do IVA – que vai agora ser parcialmente corrigido. Mas não só canalizou integralmente as receitas desse aumento para apoiar financeiramente dois sectores sociais de enorme sensibilidade (a Caixa Geral de Aposentações e a Segurança Social do sector privado), como mesmo depois de se reduzir o IVA essas transferências se vão manter. Se isto é a consolidação pela consolidação, já não sei do que estamos a falar! O Governo dirigiu completamente esse aumento de impostos para a área social, para lhe sustentabilidade e eficácia. É indiscutível que tem havido uma prioridade a áreas sociais estratégicas, como a da educação, da qualificação profissional. E é também indiscutível que temos vindo, passo a passo, a enriquecer o nosso sistema de protecção social, principalmente na dimensão solidária, de diferenciação positiva. Não tenho a visão de que a correcção do défice pudesse ser todo um programa político, mas há uma coisa de que tenho convicção: não há programa político sem a correcção do défice.
É isso que Manuel Alegre não percebe?
Não, acho que Manuel Alegre percebe isso. Mas julgo que o que acabei de dizer é muito evidente. A possibilidade, que foi finalmente atingida, de nos colocarmos numa trajectória de equilíbrio orçamental abre-nos margem de actuação nas políticas públicas que nunca existiria sem essa consolidação. Depois há outra coisa, a dimensão estrutural dessa consolidação, que alguns não entendem. É pensar não apenas na consolidação das contas públicas agora, mas pensar que este esforço não faz nenhum sentido se daqui a dez anos estivermos na mesma. E para isso é necessário corrigir aspectos do nosso Estado, alguns deles também na dimensão social. Dou o exemplo mais claro: vejo com um sorriso alguns líderes políticos dizer que não foi feita nenhuma reforma da administração pública, quando fizemos a convergência dos regimes de protecção social, provavelmente a reforma mais profunda para a estabilidade das nossas contas públicas e do nosso Estado social das últimas décadas.
Apesar de tudo – e isso é que terá levado ao artigo de Mário Soares, por exemplo – Portugal continua com uma das taxas mais elevadas de pobreza da União Europeia. Para um ministro da pasta, não é alarmante?
Naturalmente que as assimetrias sociais e a taxa de pobreza são a preocupação maior para quem tem esta responsabilidade. Mas eu tenho uma situação um pouco diferente de alguns comentadores desta área: a minha consciência não fica aplacada por fazer alarde da minha preocupação. Eu tenho a responsabilidade de agir. E é só aí que posso ser avaliado, não nas minhas afirmações mais ou menos enfáticas sobre o carácter inaceitável que é mantermos demasiadas mulheres e homens em situação de fragilidade social.
A actual conjuntura económica, desfavorável, coloca novos desafios à revisão do Código do Trabalho? Pondera a possibilidade de adequar as propostas aos novos tempos ou entende que não é necessário?
Gostaria naturalmente de estar a discutir este tema com a economia a crescer a mais de 4%. Seria mais confortável. Mas julgo que há dimensões dos problemas identificados no domínio laboral que não podem ficar congelados, à espera que a conjuntura internacional melhore e que a nossa economia acompanhe esse crescimento. As dimensões críticas do funcionamento do nosso mercado de trabalho exigem uma resposta estrutural. Não é para produzir mudanças apenas amanhã ou depois de amanhã.
É natural que, neste contexto, sinta mais pressões no sentido da desregulação, da maior mobilidade ou adaptabilidade...
Era capaz de pôr um ponto final mais cedo na sua frase: é natural que sinta mais pressões... ponto. Não apenas do lado da desregulação, mas também na protecção. Se para alguns a resposta à situação mais difícil é desregular, para outros é preciso proteger mais.
Qual a sua posição enquanto árbitro?
Não me posiciono como árbitro. É uma posição para a qual nunca tive vocação. Gosto mais de fazer parte do jogo. Quando vejo um jogo, tomo sempre partido por uma das partes... O que digo é que temos de fazer mudanças que representem avanços do ponto de vista dos compromissos sociais. Se as dificuldades são acrescidas, mais razão há para que as partes procurem o maior consenso possível, para que a superação das dificuldades seja feita com maior esforço. Foi isso que aconteceu nos outros países.
Não quer ser árbitro, prefere ser jogador. Joga, então, mais do lado da desregulação ou da protecção? Onde está a resposta?
Não gosto da palavra desregulação. Uma das componentes do Modelo Social Europeu é precisamente termos mercados regulados. Não sou pelos mercados desregulados. Já a flexibilidade – ou a adaptabilidade, chamem-lhe o que quiserem – julgo que corresponde a uma necessidade do país. Das empresas e dos trabalhadores. A questão é encontrar as dimensões de flexibilidade mais apropriadas e as de protecção mais prioritárias. Fizemos a nossa escolha: na adaptabilidade, apostar na organização do tempo de trabalho, na chamada flexibilidade interna às empresas, para que possam defender a sua produção, defendendo o seu emprego. E não variar a sua produção, variando o seu emprego, que é o modelo de outros países. Um modelo onde se tornam as coisas de tal maneira flexíveis que hoje contrato e amanhã despeço.
Ou seja: da flexisegurança ficar só com a parte “flexi”, deixando a segurança para o Estado...
Não é isso, é olhar da flexibilidade apenas uma parte, a flexibilidade externa. Tenho de me adaptar internamente, quando a situação é mais difícil, tentando que essa adaptação se faça sem perder o meu capital humano. Isso é um bem para as empresas e um bem para os trabalhadores. É por isso que a flexibilidade é tão importante. Olhemos, em todo o mundo, para os acordos que se fazem entre sindicatos e empregadores em situações difíceis, como no sector automóvel. Estou a falar em acordos, não em decisões unilaterais.
Está a falar na negociação colectiva. Um dos receios era que em Portugal fosse prejudicada pelo Código do Trabalho em vigor, mas os números mais recentes não apontam nesse sentido...
(pausa) Houve um esforço de recuperação - o primeiro impacto foi muito negativo – que também não é alheio ao facto de terem sido feitas alterações cirúrgicas ao código no final de 2005. Não digo que fosse só por isso. Também houve empenhamento de uma série de parceiros, a nível sectorial. Há convenções novas, no sector agrícola, e renovações completas de contratação no sector têxtil.
A possibilidade de em sede de negociação colectiva se ir mais longe do que a lei não o preocupa? A lei não deveria ser um travão a alguns tentações?
Deve ser um travão, mas não em todas as áreas. A nossa proposta, que está na Concertação Social, é que ao invés de a lei explicitar que o que dela consta é o mínimo, não se mexe, ou dizer que o que está na lei tanto pode ser alterado para cima como para baixo, deve encontrar-se um ponto de equilíbrio, em que a lei diga que em determinados pontos só se pode mexer para melhor, outros são imperativos e noutros a mudança depende da negociação colectiva. Porquê? Porque há pontos em que as partes se entendem ganhando aqui e perdendo ali. Essa é a essência da negociação.
Mas a relação das parte é igual? Não será necessário o Estado regular?
Por isso é que há lei, para proteger mínimos. Se não, poderíamos chegar a situações de desequilíbrio muito profundo. A lei estabelece mínimos em áreas fundamentais, como a protecção das pessoas com maior fragilidade (mulheres grávidas, por exemplo), duração do descanso, normas de saúde e segurança no trabalho. Há uma célebre frase de um padre francês do século XIX: “Entre o forte e o fraco, é a lei que liberta e a liberdade que oprime”. O império da lei é o império da liberdade e da justiça. Mas julgo que nada nos impede de encontrar esse tal equilíbrio, em que as partes digam: “Isto, para nós, não se mexe ou só se mexe se for para mais favorável. Tenho dado este exemplo: na Suécia, a duração mínima das férias é de 22 dias, tal como em Portugal. Qual a duração real em contratação colectiva? Na Suécia, 33 dias; em Portugal, 24,5. O mínimo está lá; é o mesmo. Depois, as partes negoceiam. É este o caminho que nós propomos. Escolhemos do lado da flexibilidade o que tem a ver com a organização das empresas – e julgo que escolhemos bem, porque é uma zona onde o interesse das empresas e do emprego é coincidente. E do lado dos trabalhadores escolhemos atacar o problema mais sério, indiscutivelmente o da segmentação, o problema de termos vários mundos dentro do mundo do trabalho, o que é factor de grande fragilidade social. Daí as propostas que fizemos no domínio do combate à precariedade.
Em que medida o modelo de combate aos recibos verdes pode fragilizar as empresas e a criação de emprego – é uma das posições – ou demonstrar (é outra das posições) que o Estado se “rendeu”? Se não pode impedir o recurso a recibos verdes, passa a tentar que, ao menos, representem algum ganho.
Não faz parte do nosso modelo social, da nossa forma de olhar a sociedade, abdicar de qualquer mínimo, porque isso levar-nos-ia para uma situação que não só seria socialmente inaceitável, como economicamente profundamente perigosa. A existência de situações de ilegalidade no que toca ao abuso do regime de prestações de serviços, além de criar os problemas sociais que conhecemos, introduz um problema de concorrência. Nem todos o fazem. E quem o faz ganha uma vantagem inaceitável, por estar à margem da lei. Todos os anos há milhares de casos corrigidos ou levados a tribunal pela Autoridade para as Condições de Trabalho de recibos verdes de pessoas que têm horário de trabalho, recebem no mesmo dia, têm os mesmos aumentos dos colegas, mas não têm contrato de trabalho. Não é uma situação razoável. Mas negar que o mundo mudou, no sentido em que ganhou importância um tipo de relação profissional que não é de contrato subordinado, é negar a evidência. Há cada vez mais actividades profissionais em que, por escolha das pessoas ou porque só podem ser concretizadas dessa forma, as pessoas são verdadeiramente trabalhadores independentes. Vamos negar a existência dessas pessoas? Há quem proponha: mudem lá a cor ao recibo verde e estabeleçam que há um conjunto de profissões em que não pode haver recibo verde. É absurdo!
Podia fazer-se o contrário: em determinadas profissões é adequado e goza de um regime legal específico.
Desafio-o a encontrar uma actividade profissional onde não seja possível alguém assumir, por vontade própria, uma relação de trabalhador independente. É extremamente difícil, a não ser em funções de soberania. Em quase todo o tipo de actividades se pode admitir isso. Hoje em dia, há pessoas que não têm uma entidade empregadora, mas quatro ou cinco empresas para as quais trabalham com regularidade, mas sem subordinação. Têm avenças para trabalhar nesta ou naquela área – jurídica, informática, do design. É uma forma legítima de trabalhar. O que não é legítimo é que, havendo essa relação de trabalho, ela seja tão penalizadora como era para o prestador de serviços. A questão dos 5% reside aí. Não é legalizar os falsos recibos verdes ou torná-los aceitáveis. O que fazemos é reforçar as normas da lei que auxiliam a administração dos tribunais a transformar a presunção do contrato de trabalho em certeza. Qual é a formulação do código de 2003? Para haver um contrato de trabalho era preciso que, cumulativamente, se provasse uma série de coisas, cinco ou seis. Que se trabalhava no estabelecimento do empregador, sob sua orientação directa, com remuneração certa e permanente... Bastava não haver um para deixar de ser relação de trabalho. Era o que tenho chamado “via verde para os recibos verdes”, porque tornava quase impossível provar a existência de uma relação subordinada – só em termos judiciais se conseguia. É necessário ser significativamente mais rigoroso. Já o fizemos na intervenção de emergência em 2005, mas queremos ir mais longe. A nossa escolha foi atacar os problemas onde eles existem. Existem problemas de escassez de flexibilidade e de excesso de gente na margem dos sistemas.
Vamos assistir a uma versão final do Código do Trabalho que acolha apenas a UGT?
Não faço previsões.
Neste momento, tem já alguma sensibilidade sobre as reacções...
Não tenho. E mesmo que tivesse... Disse desde o início que enquanto estou na negociação não faço comentários sobre o seu desenvolvimento.
Uma última questão, quase de filosofia do código. Já associou várias vezes a flexisegurança à revisão do código. Numa das declarações, quase disse que era uma espécie de flexisegurança à portuguesa.
Não o disse. Foi uma interpretação que fizeram. Alguém escreveu por mim.
Não há intenção de contemplar alguns dos princípios da flexisegurança, no âmbito desta revisão?
Seguramente, mas não têm de estar todos no Código do Trabalho. A questão da adaptabilidade das empresas, da gestão do tempo de trabalho, é um dos princípios básicos da flexisegurança. A questão de auxiliar as transições, através de políticas activas, diminuindo a taxa social única nas transições entre contratos, está prevista. E estão todas as outras áreas, como a formação profissional. Creio que também o combate à excessiva segmentação do mercado se integra claramente no conceito de flexisegurança. Não precisamos de aplicar o nome para que a adaptação dos princípios comuns que aprovámos durante a Presidência Portuguesa da União Europeia à realidade portuguesa se faça. Há pouco tempo, reli o programa do Governo e verifiquei que estão lá associadas flexibilidade e segurança. Em 2005, quando ainda não se falava de flexisegurança.
O ministro Silva Pereira foi às Jornadas Parlamentares do PS falar do adiamento de objectivos do Governo. Entre esses adiamentos, encontra-se a meta de criação de emprego?
Não fizemos nenhuma revisão das metas, para além das que constam sempre do Programa de Estabilidade e Crescimento. O emprego teve – como é reconhecido não por todos, mas por quem olha para os números – um comportamento claramente positivo nos dois últimos trimestres. Houve uma inversão de tendência.
Isso chega para sustentar que não exista, apesar da forte revisão em baixa do crescimento económico, impacto no desemprego?
Não é de excluir que haja impacto, que espero seja limitado. A informação que me tem chegado sobre intenções de investimento é que se mantêm. Há um conjunto de novos investimentos, com grande efeito de arrastamento. As contribuições para a Segurança Social continuam a um nível elevado. Não tenho sinais de que haja alteração. Obviamente que seria hipocrisia dizer que, na conjuntura internacional que estamos a viver, vai haver aqui uma ou outra ilha, que ficam completamente isoladas e não vão sentir essas mudanças. Vimos de uma situação difícil, de crescimento económico muito baixo. Estávamos a recuperar o crescimento e foi isso que começou a alimentar o crescimento líquido do emprego – maior até do que aquele que seria necessário para manter a taxa de desemprego estabilizada. Começou a cair, com significado, no último trimestre. Julgo possível que este abrandamento não tenha efeitos tão negativos como poderia ter noutro contexto, o contexto em que estávamos a iniciar um processo de crescimento.