Isabel Leiria e Daniela Gouveia , in Jornal Público
Os polícias no local dissuadiam ontem qualquer tentação de ajustes de contas. Apesar dos assaltos e dos incidentes frequentes, moradores dizem que nunca tinham visto tanta violência
Vinte e quatro horas depois dos confrontos que, em dois dias, envolveram dezenas de pessoas, disparos e nove feridos ligeiros na Quinta da Fonte (Loures), uma calma aparente tinha ontem regressado ao bairro.
Dos desacatos da véspera sobravam vestígios de balas perdidas cravadas em algumas fachadas dos prédios amarelos, vidros partidos e carros vandalizados. Seis agentes da polícia, fortemente armados, vigiavam as movimentações do cimo da Avenida José Afonso - a artéria principal do bairro da Quinta da Fonte onde os incidentes decorreram - e dissuadiam eventuais ajustes de contas, temidos agora por uma população habituada a assaltos e distúrbios mas não ao nível de violência a que assistiram quinta e sexta-feira, segundo contaram ao PÚBLICO alguns moradores."Isto não fica por aqui. Só quando morrerem todos", dizia Cristiano Garcia, encostado a um carro. Na mercearia da Av. José Afonso, a mulher por trás da caixa sugeria: "Toda a gente diz que amanhã vai recomeçar." Na rua, um cortejo de carros, com uma limusina branca a encerrar, apitava ruidosamente celebrando o casamento de uma família de moradores, dando um ar de normalidade a um bairro onde muitos temem sair à rua ou lá entrar, como alguns taxistas ou os distribuidores da publicidade, que acabam por se ficar pelas caixas de correio das imediações.
Falta de segurança
A própria polícia avisava ontem que, para circular no bairro, era melhor "ir de carro". E que se os jornalistas avançassem seria por sua "própria conta e risco." Indiferentes a isto, um grupo de crianças brincava com os seus triciclos no meio da rua."Isto é um bairro de ladrões", desabafava Maria José, moradora há 40 anos na Quinta do Arneiro, bairro contíguo ao da Quinta da Fonte. Por duas vezes assaltada, Maria José conta como todos os dias sai de casa só com um "saco e o coração nas mãos". Garante que aquele era um bairro tranquilo, até aos realojamentos por altura da construção de vias de acesso à Expo 98. Aí se juntaram famílias de origem africana e etnia cigana, que, de acordo com os relatos de quem presenciou os tiroteios, estiveram na origem dos desacatos. Agora, temem-se mais vinganças. Já ontem, uma família cigana pediu protecção policial para abandonar a Quinta da Fonte. Não foi a primeira a sair do bairro, conta Ricardo Domingos, morador e elemento da Associação de Jovens da Apelação.
Domingos admite que a tensão entre indivíduos dos dois grupos é "difícil de resolver". E que a presença de armas no bairro é um problema. "Por prédio, deve haver uns oito inquilinos armados", calcula Domingos, que testemunhou os disparos "de caçadeira" que lançaram o pânico na Quinta da Fonte. Em declarações à Lusa, o presidente da Junta de Freguesia da Apelação, José Alves, também se manifestou preocupado com as "rixas entre as etnias cigana e negra" e admitiu ter receio de que "algo mais desagradável" aconteça: "São pessoas com carências sociais e económicas", muitas no desemprego ou a viver do Rendimento Social de Inserção. As dezenas de jovens encostados aos prédios e às colunas dos prédios durante todo o dia, vigiando as ruas, são aliás uma das imagens de marca deste bairro às portas de Lisboa. Os dois homens detidos na madrugada de sexta saíram ontem em liberdade com termo de identidade e residência, depois de serem ouvidos no Tribunal de Loures. De acordo com a Lusa, os jovens, de 23 anos, foram indiciados por posse ilegal de arma e participação e motim, tendo de apresentar-se duas vezes por semana na esquadra de Loures. A polícia apreendeu no local três caçadeiras, duas pistolas automáticas de calibre 9mm e 7,65 mm e dezenas de cartuchos e munições de calibre variado.