Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas, in Jornal Público
Membros de instituições da UE, governos e associações expuseram os problemas da comunidade. Há urgência em resolvê-los, diz Barroso
Representantes de várias comunidades ciganas acusaram ontem a Comissão Europeia de ter aceite uma "violação gritante dos direitos humanos" com o seu aval à política do Governo italiano de recenseamento e recolha de impressões digitais dos membros das etnias "roma", "siti" e nómadas.
A frustração por esta política marcou a primeira cimeira europeia organizada pela Comissão Europeia sobre a situação de uma das mais importantes minorias étnicas da UE, que é caracterizada por uma "discriminação persistente", segundo afirmou o seu presidente, Durão Barroso.
Centenas de membros de instituições europeias e internacionais, governos da UE e representantes da sociedade civil expuseram ao longo do dia os problemas de extrema pobreza, exclusão social, segregação e racismo de que as comunidades ciganas são vítimas em vários países europeus. Para Barroso, se a situação não mudar rapidamente e o desespero persistir entre as comunidades ciganas, os acampamentos e bairros de lata "tornar-se-ão inevitavelmente zonas de insegurança para os seus habitantes e para as sociedades maioritárias que os rodeiam".
Apesar de lembrar que a integração dos ciganos constitui uma competência nacional, Barroso defendeu que para haver uma mudança "é necessário mais do que não-discriminação". "Precisamos de um reforço da acção das autoridades públicas e sociedades maioritárias, a par de um aumento da responsabilidade cívica dos ciganos - mas nesta ordem. Acredito firmemente que os deveres das autoridades públicas devem vir primeiro", defendeu.
Tribunal de Justiça
O tema que dominou implicitamente os trabalhos foi no entanto o recenseamento iniciado este Verão das comunidades ciganas instaladas em Itália, e a sua aceitação pela Comissão Europeia. "Fiquei muito surpreendido", afirmou ao PÚBLICO Ivan Ivanov, director da ERIO, uma federação de mais de 300 organizações ciganas. O risco, considera, é que o caso italiano se transforme na abordagem de toda a Europa face aos ciganos. Alguns dos seus associados contam aliás contestar a política de Silvio Berlusconi no Tribunal de Justiça da UE.
A crítica mais contundente partiu de George Soros (foto), o famoso financeiros e filantropo: "Estou muito preocupado com a 'fichagem' dos ciganos em Itália. Deveria ser ilegal, e espero que o Tribunal de Justiça a analise e declare ilegal", afirmou, suscitando uma ovação entre os presentes.
Claramente na defensiva, Jacques Barrot, comissário europeu responsável pela Justiça, Liberdade e Segurança, ocupou o essencial da sua intervenção, à tarde, a responder ao financeiro de origem húngara, que já não estava presente. "Ou Soros ignora os factos, o que acredito, ou deu mostras de alguma má fé", acusou. O programa italiano de recenseamento só foi aceite por Bruxelas depois de o Governo de Berlusconi ter alterado o seu projecto inicial, afirmou.
"Dissemos que nunca aceitaríamos um recenseamento numa base étnica ou religiosa", nem "a recolha de impressões digitais dos menores sem uma intervenção do juiz e sem motivos legítimos, e foi nessa base que o Governo italiano estabeleceu as linhas directrizes da sua política", garantiu.
Blá-blá-blá simpático
"Agora, evidentemente, todo o problema está na aplicação", mas uma comissão do Parlamento Europeu vai brevemente a Itália para confirmar se a prática seguida nos acampamentos ciganos é ou não conforme com a política comunitária antidiscriminação, precisou Barrot, garantindo: "Não tolerarei nenhum texto nem nenhuma prática incompatível com o direito comunitário."
Mesmo se nenhum dos presentes estava à espera de resultados imediatos da cimeira de ontem, Valeriu Nicolae, da organização European Roma Grassroots, pôs o dedo na ferida quando interpelou a sala: "Estamos aqui a assistir a um blá-blá-blá simpático sobre a integração, quando há 800 anos que nos querem expulsar da Europa, e ninguém nos diz o que é que vai ser feito para nos livrar dos comportamentos contra os ciganos."
Portugueses na cimeira
Participantes satisfeitos com o alerta europeu
A realização desta primeira cimeira europeia é um "salto político" na visibilidade do problema, disse ao PÚBLICO Luís Pascoal, responsável pelo Gabinete de apoio à minoria cigana do ACIDI (Alto-Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural) e representante português na cimeira. Em Bruxelas também esteve presente António Pinto Nunes, presidente da Federação Calhim (cigana, em Romani) Portuguesa. Deste encontro, António Pinto Nunes espera que as medidas para a maior inclusão social dos ciganos saiam "do papel", principalmente no que toca "à educação, ao acesso ao mercado de trabalho, à habitação e à saúde", apesar de "em Portugal a situação ser melhor que na maioria dos países europeus", referiu. Ambos concordaram com as palavras de Durão Barroso, que - segundo Luís Pascoal - reflectem a necessidade de dar uma atenção especial a esta minoria, tal como a presidência portuguesa da União Europeia alertara, em 2007. Em Portugal, "a distância a percorrer é muito maior que a já percorrida", referiu Luís Pascoal, defendendo no entanto que muito já foi feito contra a discriminação "histórica" da etnia, nomeadamente através do "rendimento social de inserção, que permite que muitas crianças ciganas vão à escola", opinião partilhada por António Nunes. Em relação à polémica lei de registo de ciganos em Itália, o presidente da Federação Cigana considerou a medida "uma discriminação total". Luís Pascoal confirmou haver na cimeira uma rejeição generalizada desta lei, que vai "contra as medidas de inclusão que a maioria dos países europeus tenta adoptar". S.C.
Comunidade cigana
10 a 12 milhões
de ciganos na Europa, segundo as associações ciganas, constituem a maior minoria étnica europeia
90%
da comunidade cigana europeia é, actualmente, sedentária, tendo abandonado o estilo de vida nómada
50%
das crianças ciganas europeias não termina o ensino primário, estima um relatório do Conselho Europeu
40 mil
portugueses de etnia cigana residem em Portugal, número que pode chegar aos 60 mil, segundo estimativas do Alto-Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural (ACIDI)