26.9.08

"Vêm com a roupa do corpo e entregam-se aos empreiteiros"

Natália Faria, in Jornal Público

São à volta de 400 os romenos instalados em Santa Marta de Penaguião. Andam nas vindimas, à mercê dos "empreiteiros agrícolas"


Muitos chegam apenas com a roupa do corpo. Quase sempre "chamados" por familiares ou por promessas vagas de emprego. Agrupam-se em apartamentos cuja renda é inflacionada pela procura e que pagam por cabeça. Não dominam a língua. E são postos a trabalhar nas vindimas, à mercê de "empreiteiros agrícolas" que lhes ficam com uma percentagem elevada do salário. Os imigrantes romenos chegaram em força ao concelho de Santa Marta de Penaguião, no distrito de Vila Real. Serão "à volta de quatrocentos", nas contas do presidente da câmara, o socialista Francisco Ribeiro. Que, preocupado com a exploração a que estão sujeitos, pediu à Autoridade para as Condições de Trabalho que fizesse, no próximo dia 10, uma acção de sensibilização junto dos empregadores e dos próprios imigrantes.

"Os romenos vieram colmatar uma falha que é a insuficiência de mão-de-obra na lavoura: não faz sentido que ganhem menos que os de cá", desabafa, desalentado, Francisco Ribeiro, no seu gabinete. "Andam sem contratos, não fazem descontos nem nada, estão à mercê desses empreiteiros que lhes pagam vinte euros ao dia e os vendem a trinta", calcula o autarca. Se as contas estiverem certas, cada "empreiteiro agrícola" embolsa dez euros por cada imigrante que tenha por sua conta. E alguns têm à volta de oitenta. Feita a multiplicação, dá um lucro de 800 euros ao dia.

Noutro gabinete, o responsável dos serviços locais da Segurança Social (SS), António Moreira Araújo, confirma que o negócio dos empreiteiros "é chorudo". Romenos legalizados e a fazer descontos "são uma minoria". À volta de "dez por cento do total", ou seja, os que têm a sorte de ser contratados pelos produtores agrícolas para cuidar da vinha durante todo o ano. O problema, como diz o presidente da câmara, é que "a crise bateu forte no Douro" e o vinho, "que antes se vendia a 400 euros a pipa, vende-se agora a cento e poucos euros". Por isso, "os agricultores fazem o mínimo indispensável pela vinha". Consequência directa: "Só dois ou três por cento é que fazem directamente as vindimas. As restantes são entregues a empreiteiros agrícolas", insiste António Moreira Araújo.

Na Quinta da Pitarrela, a poucas centenas de metros do centro da vila, quem anda a cortar e a acarretar as uvas espalhadas pelos socalcos são romenos. "Tenho sete portugueses e trinta e seis romenos: a maioria trazida pelo empreiteiro", introduz o produtor vitivinícola Edgar Nogueira. Para colher as uvas não é preciso falar português. "Pago a todos por igual", garante o produtor. São 29,5 euros por dia a quem corta e 32,5 euros a quem carrega os cestos até à carrinha de caixa aberta que, entre cães e muito pó, faz o vaivém entre a vinha e o lagar. "Se têm alojamento em condições e qual a percentagem que recebem, isso já é entre eles e o empreiteiro", desculpabiliza-se Edgar Nogueira, ele próprio patrão de um casal de romenos contratados para cuidar da vinha durante todo o ano. "Mas esses têm comida, casa e descontos certinhos", garante. "Temos férias e subsídio de férias", confirma Marius Persic, de 29 anos, chegado da Roménia há cinco anos. Veio chamado por um tio; depois, ele próprio chamou a mulher. Hoje, é um dos elementos mais antigos da comunidade romena de Santa Marta. "Vieram muitos mais quando a Roménia entrou na União Europeia. Antes, se ficássemos mais de três meses, éramos apanhados", explica. "Lá ganhava 130 euros por mês a trabalhar numa loja: aqui ganho 600", compara Daniela Ursu, das poucas romenas que aceitou falar ao PÚBLICO. A maioria não fala português. E Marius pouco aceita dizer sobre as condições em que vivem os compatriotas recém-chegados. "Alguns ficam. Outros, depois das vindimas, vão para 'a azeitona' no Alentejo, ou para Espanha ou França... Às vezes, são os empreiteiros que lhes arranjam as casas. Algumas têm casas-de-banho, outras não...".

O padre Edgar Barbosa não se importa de levantar o véu sobre a comunidade romena de Santa Marta. "Vêm com a roupa do corpo e entregam-se aos 'empreiteiros', até porque chegam sem dinheiro para cobrir as primeiras despesas". É ele que anda, "quase no escondido", a distribuir-lhes roupa, cobertores e comida. "Alguns chegam por conta própria e não arranjam logo trabalho. No centro paroquial já temos acolhido alguns bebés". Também já aconteceu ter que fazer uma colecta para pagar a viagem de regresso a uma romena "desamparada e sem trabalho". Mas o que mais magoou este padre foi vê-los sujeitos à especulação. "Vi casas em que moravam dez pessoas, num ou dois compartimentos, e o senhorio cobrava à cabeça: cinquenta euros cada. É abusivo e injusto, mas parece-me que as coisas agora andam um bocadinho melhores". Terá sido da recente campanha de fiscalização que obrigou alguns empreiteiros agrícolas a colectar-se nas Finanças. "Esses empreiteiros são gente da terra", descreve António Moreira Araújo, da Segurança Social, "gente que viu aqui uma oportunidade de ganhar dinheiro". São pessoas que se cansaram de insistir na lavoura. Entre os restantes homens da terra, muitos emigraram. "Foram para a construção civil espanhola, onde ganham mais um bocadinho, e para a Suíça e França. Em Bruxelas, também há uma comunidade forte de portugueses. Nos cafés, é quase tudo gente de Santa Marta", assinala Francisco Ribeiro. Dos que ficaram, "a maioria vive do Rendimento Social de Inserção", segundo Moreira Araújo. De facto, na Quinta da Pitarrela, entre os que falam português, vê-se um estudante em compasso de espera para as aulas, uma emigrante que meteu férias de Bordéus para matar saudades da terra e pouco mais. "Nós fomos trabalhar para fora e os romenos vieram para cá fazer o nosso trabalho", brinca Patrícia Sousa, de 23 anos. "Em Bordéus tiro 1400 euros por mês e aqui não passo dos 700. E nem sempre há trabalho". E fixar-se de vez na terra? "Nãaa", rejeita, "lá a vida é mais certa".

Preocupada com "a situação dos imigrantes ilegais", a Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) vai pedir uma reunião com as embaixadas da Roménia e da Moldávia, "para perceber melhor este fenómeno migratório", como adiantou ao PÚBLICO Paulo Morgado. O inspector-geral garante que a ACT está atenta à realidade nas vindimas no Douro e "a desenvolver acções para detectar irregularidades e corrigir disfunções".

No caso da comunidade romena, "tem havido um acréscimo significativo de cidadãos a procurar trabalho", reconhece.

As estatísticas do INE relativas a 2007 mostram que os romenos já constituem a segunda maior comunidade de imigrantes em Portugal, logo a seguir aos brasileiros. Dos 60.117 estrangeiros que naquele ano pediram autorização de residência, 10.976, ou seja, 18,3 por cento, eram romenos (contra 19,2 por cento de brasileiros). A Ucrânia passou para terceiro (14,9 por cento). Para se dar conta deste "salto", basta lembrar que, em 2006, apenas 3900 romenos tinham pedido autorização de residência, ou seja, num ano, triplicaram os romenos legalmente fixados em Portugal. E, dos romenos que em 2007 pediram estatuto legal de residente, 10.777 nasceram no estrangeiro e apenas 199 em Portugal, o que também ajuda a perceber o quão recente é esta comunidade. A entrada da Roménia na União Europeia, em Janeiro de 2007, e a consequente liberdade de circulação, serve de chave explicativa para este repentino aumento.

188%
Foi quanto aumentaram, num só ano, os pedidos de autorização de residência apresentados por romenos