Ana Bela Ferreira, in Diário de Notícias
Mendigar. Usar crianças para pedir esmola é crime. Mas quem leva os filhos para a mendicidade pode também estar a evitar que fiquem sozinhos e abandonados à sua sorte. Por isso, os magistrados de família e menores do distrito de Lisboa aconselham cautela na hora de tomar medidas que possam separar as crianças dos pais. Antes de mais, deverá ser prestado auxílio à família para a ajudar no sentido de estas situações de mendicidade não voltarem a repetir-se.
O rapaz que toca acordeão na Baixa de Lisboa para ganhar umas moedas chama a atenção dos que passam. Mas as pessoas estão mais interessadas no cão que segura o cesto onde deixam as moedas e não reparam que o rapaz do acordeão devia estar àquela hora na escola. Como veio aqui parar ninguém sabe, mas não é caso único. As situações de menores mendigos parecem estar a diminuir, mas em 2004 a linha SOS Criança, do Instituto de Apoio à Criança (IAC) recebeu 1159 denúncias.
A utilização de crianças na mendicidade é crime, punível com pena de prisão até três anos. Em causa está também a retirada ou não da guarda do menor aos pais. Para que não hajam dúvidas, os magistrados da jurisdição de família e menores do distrito de Lisboa elaboraram, durante um encontro, uma recomendação que aconselha cautela na aplicação de medidas que retirem imediatamente os menores da guarda dos pais. Em causa, a imposição de "um sacrifício maior do que aquele que decorre da aparente situação em que se encontra, no momento, exposta [a criança] ", lê-se no documento a que o DN teve acesso.
Cautela defendida também por Manuel Coutinho do IAC, que evidencia: "quem anda com uma criança ao colo a pedir esmola não está bem". "Os pais não têm que ficar sem os filhos por razões económicas". A solução é criar condições para que as crianças possam continuar a viver com os progenitores.
Só em casos muito raros, estas situações de mendicidade se traduzem em exploração de trabalho infantil ou maus-tratos. O procurador Norberto Martins recorda uma dessas histórias. "Tive um caso, no Porto, em que o pai queimava a criança com o cigarro para ela chorar e assim comover as pessoas que passavam e davam dinheiro", conta. Resultado: "A criança foi-lhe retirada". Mas esta é sempre "uma solução de fim de linha", conclui Norberto Martins.
O facto de os pais levarem as crianças para pedir esmola pode ser uma arma para sensibilizar as pessoas que passam na rua. Mas é também sinal de que "existe um laço entre os pais e aquelas crianças. Pelo menos, não ficam abandonadas", frisa o psicólogo Manuel Coutinho.
O fenómeno da mendicidade infantil atingiu proporções mais preocupantes em 2004. Época em que foi lançada pelo IAC, em parceria com as forças policiais, uma campanha de sensibilização. Na altura, era frequente a concentração de crianças a mendigar "nas grandes superfícies comerciais, junto às caixas dos parques de estacionamento", lembra o responsável. Também junto aos semáforos das grandes avenidas, se viam frequentemente menores a pedir esmola.
Já o procurador Rui do Carmo alerta para o facto de a mendicidade infantil ser uma situação de perigo que "não é muito diferente de outras situações de perigo pelo qual as crianças são retiradas aos pais". Por isso, "o importante é perceber se é possível remover o perigo", ou seja, a mendicidade, esclarece.
Certo é que "cada caso é um caso" e, para se tomar uma decisão consciente, "é preciso avaliar a relação que os mantém com a criança e a forma como a tratam", realça Rui do Carmo. Assim, tirar a criança da família só deve acontecer quando estes, mesmo sendo ajudados, não a conseguem educar.