26.10.08

Uma vida com a casa às costas

Hugo Silva, in Jornal de Notícias

Crise em Espanha obriga muitos operários da construção civil portuguesesa regressar a casa ou a procurar salários mais altos noutros países europeus. "Os próprios patrões espanhóis já reduzem o ordenado", diz um trabalhador


O pior eram mesmo as viagens. "Horrorosas". Horas e horas dentro de uma carrinha, muitas vezes ao volante, com centenas de quilómetros para vencer. "Eram 700. Sempre à noite". Mal chegava ao destino, José Joaquim Fernandes, 40 anos, cumpria o ritual: telefonar para casa.

Em Alpendorada, Marco de Canaveses, ficavam a mulher, Maria de Fátima, e os dois filhos, Ricardo André, hoje com 16 anos, e Mariana Raquel, com cinco. A rotina do trabalhador da construção civil durou três anos. A crise no imobiliário espanhol determinou o regresso a Portugal.

Bruno Miguel voltou a trabalhar em Portugal

"Acabámos a obra e não havia mais trabalho em Espanha", recorda José Joaquim, que esteve em Oviedo e em Bilbao, em empreitadas de construção de habitações. "A situação está pior lá do que cá", argumenta Bruno Miguel Carneiro, que também voltou ao trabalho em Portugal, após quatro anos em Espanha, quase sempre em Madrid.

"Os próprios patrões espanhóis já reduzem o ordenado e, mesmo assim, alguns já não conseguem pagar a tempo. A crise chega a todo o lado", atenta José Joaquim.

José Fernandes trabalhou três anos em Espanha

"Não há muito trabalho, está complicado. A construção nunca vai acabar, mas há muito menos para fazer", explica Bruno, 26 anos, de Penhalonga. Em Janeiro do ano passado, o JN acompanhou uma das viagens de Bruno e dos colegas de trabalho rumo a Espanha. Mais de seis horas de estrada entre o Marco de Canaveses e Madrid. A pequena freguesia de Penhalonga ficava quase sem homens, todos a trabalhar fora, sobretudo em Espanha. O concelho do Marco de Canaveses continua a ser um dos maiores "exportadores" de operários de construção civil.

"Há muita gente a trabalhar fora", confirma Domingos Neves, presidente da Junta de Alpendorada. Com a crise em Espanha, os trabalhadores que não regressam vão ganhar a vida noutros países. Os salários em Portugal não chegam para sustentar a família.

"A nossa vida é andar com a casa às costas", sorri José Joaquim. Trabalha na construção civil há 14/15 anos e, nos primeiros tempos, fartou-se de andar de terra em terra: Porto, Lisboa, Coimbra, Algarve. "Conheço o país de uma ponta à outra", continua, bem disposto. Ainda assim, a decisão de partir para Espanha não foi fácil.

"Depois de casar, há 17 anos, trabalhei sempre aqui por esta zona de Alpendorada. Custou-me muito ir para Espanha", explica. O "sacrifício" só era compensado pelo aumento substancial da remuneração mensal: "Em Portugal ganha-se metade". Enquanto trabalhava no outro lado da fronteira, José Joaquim vinha a casa todos os fins-de-semana. Como tantos milhares de trabalhadores, chegava na noite de sexta-feira e partia na noite de domingo.

"Quase que só tinha o sábado para estar com a família. O domingo era para dormir, para depois fazer a viagem à noite. Era muito complicado. Felizmente, nunca tive nenhuma azar, mas cheguei a ver acidentes aparatosos", desabafa José Joaquim Fernandes.

"Claro que compensa ir para fora, caso contrário ninguém saía de cá", aponta Bruno Miguel. de novo a trabalhar em Portugal, agora pode ir a casa todos os dias e, quando tem oportunidade, vai até ao café onde encontra sempre amigos. Há uns tempos, no auge da emigração, era bem diferente: "À noite não se via ninguém".

Com espírito irrequieto, Bruno não rejeita nova incursão pelo estrangeiro. Até pode ser no mesmo ramo, na construção civil, mas o ideal era que surgisse uma oportunidade na área das energias renováveis. "Tirei o curso de técnico", assinala, na expectativa de conseguir uma proposta para pôr em prática o que aprendeu. Importante é que o convite seja aliciante e garanta condições de trabalho. "Já sei que terei de começar por baixo, mas na construção também foi assim. Com trabalho consegue-se tudo". O facto de ser solteiro "facilita" a eventual necessidade de voltar ao estrangeiro para garantir melhor salário.

Paradoxalmente, é a família que poderá forçar José Joaquim a sair do país em busca de um salário mais alto: "O meu filho está no 12º ano e se entrar para a faculdade as despesas vão ser outras. Surgindo a hipótese de voltar a trabalhar no estrangeiro, é um caso a pensar".

O objectivo é amealhar o máximo possível. Em Espanha, aproveitava para fazer o máximo de horas possíveis: "Era trabalhar, jantar, tomar um banho e dormir". "Também tínhamos tempo para ir ao café", observa Bruno.

Os dois trabalhadores totalizam milhares e milhares de quilómetros percorridos entre casa e o local de trabalho, em Espanha. "Não custa muito. Se calhar, quem está cá e faz uma hora de viagem de casa para o trabalho e outra hora do trabalho para casa, todos os dias, acaba por fazer a mesma coisa", contabiliza Bruno Miguel, reconhecendo, ainda assim, que as jornadas rodoviárias pela noite dentro eram "cansativas".

Todos os domingos à noite continuam a sair centenas de carrinhas com trabalhadores da construção civil portugueses. Lado negro: desde 2003 já morreram 38 operários na estrada. Na noite de domingo passado registou-se mais um acidente: na auto-estrada que liga Vigo a Benavente, uma carrinha em que seguiam nove trabalhadores portugueses embateu na traseira de um camião. Dois homens, do concelho de Baião, morreram.

"É muito complicado. Quando há um acidente, as pessoas entram logo em contacto para tentar saber o que se passou", afirma, ao JN, Domingos Neves. "Toda a gente se conhece", observa o presidente da Junta de Alpendorada, freguesia que também vê partir muitos homens em busca de um salário melhor no estrangeiro. Cerca de 20% da população activa.

"Com a crise em Espanha, os trabalhadores têm ido mais para França. Mas também há gente noutros países", refere Domingos Neves. "O maior medo que existe é das viagens", acrescenta, lembrando que muitas vezes as carrinhas saem em cima da hora e depois têm que fazer a viagem em menos tempo. Na ânsia de aproveitar todos os minutos possíveis em casa, a partida é retardada ao máximo.

Quem fica do lado de cá, a família, espera sempre com o coração nas mãos. "Existe sempre preocupação", concede José Joaquim. O telefonema a informar que a viagem correu bem é inevitável. Bruno Miguel também liga. Mas se não telefonar os pais também sabem que correu tudo bem: "Se houvesse algum problema sabiam logo. As notícias ruins sabem-se se depressa".