30.10.08

“A responsabilidade não acaba no Estado”

Bruno Faria Lopes, in Diário Económico

Muhammad Yunus é um exemplo de tranquilidade.


Sentado numa poltrona do Hotel Ritz, em Lisboa, fala com uma calma e frescura invejáveis, como se não estivesse estado na véspera em Buenos Aires e não fosse voar para Milão daí a horas. Nas suas viagens relâmpago – já veio quatro vezes a Lisboa e nunca passeou na capital – o Nobel da Paz em 2006 tem uma missão, como explicou ao Diário Económico: divulgar as vantagens do microcrédito e do envolvimento das empresas e sociedade civil na redução da pobreza. Tudo porque no combate à pobreza a rapidez é essencial e “o Estado é uma máquina lenta”.

Qual é a sua percepção da actual crise e como é que está a afectar o microcrédito?

O sistema financeiro está em colapso e Wall Street funciona como o epicentro da crise. Mas é com os três mil milhões de pobres do mundo que temos de nos preocupar. A discussão ainda não chegou aí, ainda estamos a olhar para os grandes e as empresas onde está a maior fatia de dinheiro. Mas o verdadeiro impacto é nas pessoas: as crianças que ficam sem comer, as famílias que têm de se aguentar. Por isso temos de tomar atitudes rapidamente.

Quem deve liderar?

Quando as grandes instituições começam a falhar, é preciso salvá-las e só os governos dos países podem fazê-lo. Mas enquanto o fazem têm de pensar como evitar incidentes semelhantes no futuro.

E o impacto no microcrédito?...

Quanto ao microcrédito não está a sofrer efeitos directos da crise, porque não tem ligação aos grandes mercados de capitais, onde está o verdadeiro estrago. Além disso, uma das coisas boas do microcrédito é funcionar a nível local, baseado na economia real. O problema da crise está no facto de o dinheiro se ter afastado da economia real.

Desde que recebeu o Nobel da Paz em 2006, o microcrédito tem recebido ainda mais atenção do mundo, sendo apontado por instituições como a ONU ou o World Bank como “a” forma de acabar com a pobreza. Concorda com esta visão?

Nunca dissemos que era “a” maneira de fazê-lo. A erradicação da pobreza é possível e devemos usar todo o nosso talento e imaginação para consegui-lo. Ou seja, o microcrédito é uma ferramenta adicional. Cria uma plataforma de pessoas que vai ajudar, qualquer que seja o campo de acção que se queira introduzir. Por exemplo, as pessoas conhecem o Grameen Bank, mas não vêem outras organizações que criámos, como a Grameen Agriculture ou a Grameen Energy – e estamos a tentar entrar na saúde, na água.

Acha que o microcrédito tem o poder para transformar uma sociedade que tem problemas estruturais importantes?

É uma ferramenta importante.

Mas pode viver lado a lado com esses problemas, certo?

Sim, se continuar como instrumento único. Mas se houver outras linhas de acção em simultâneo, torna-se muito mais poderosa.

Em Maio de 1996 disse que um dia as nossas crianças terão de ir a museus para ver o que era a pobreza. Ainda tem essa esperança?

Sim. A pobreza é uma imposição artificial, não é natural. Portanto, é possível e natural que acabemos com a pobreza. Entre os nossos objectivos de desenvolvimento para o milénio, o primeiro é cortar a pobreza para metade.

Mas considera que os países desenvolvidos estão a fazer o suficiente para cumprir esse objectivo?

Houve problemas. Os países desenvolvidos estavam empenhados no objectivo, mas de repente veio a guerra contra o terrorismo. Ou seja, há distracções para as grandes nações, que se revelam em impedimentos ao cumprimento mais rápido do objectivo, mas muitos outros países estão focados e trabalham muito para atingir os objectivos.

Há quem diga que o senhor é um optimista porque vai sempre existir pobreza, uma vez que se trata de um problema político...

O objectivo do milénio, de cortar a pobreza para metade, vai ser atingido em 2015 por muitos países. Isto revela uma tendência: ou seja, se somos capazes de cortar a pobreza para metade, também é possível acabar com ela. A vontade política é importante, sim, mas também há uma vontade cívica. A minha e a sua vontade pesam mais do que a política. O problema não é “deles”, mas nosso.

Além do microcrédito há a questão da inovação social. Desafia a ideia de que um bom negócio é aquele que dá dinheiro, que se transforma em emprego e impostos, que financiam os cuidados essenciais a prestar pelo Estado?

O Estado é uma autoridade que chega a todas as pessoas e deve continuar a fazer a sua parte. Mas a minha responsabilidade não desaparece porque o Governo faz o seu trabalho. Mesmo porque, estruturalmente, o Estado é uma máquina lenta. Se a sociedade civil se envolver, tudo vai acontecer melhor e mais depressa. O que eu proponho é um novo tipo de negócio – que o Governo pode taxar ou não – e que não é para fazer dinheiro, mas para resolver problemas. Quero tornar estas ideias mais claras para as pessoas. É por isso viajo.

Microcrédito em Portugal empresta 10 milhões em 10 anos


O microcrédito em Portugal está concentrado essencialmente em duas redes de apoio: a Associação Nacional de Direito ao Crédito e o BCP, que tem uma rede própria de angariação de projectos de pessoas que não têm condições para aceder ao crédito tradicional. Os dados da ANDC revelam que nos últimos 10 anos, até Setembro, foram concedidos 6,7 milhões de euros, divididos por 982 projectos. O BCP, que contabiliza apenas os últimos três anos – desde que tem uma rede de centros de apoio espalhados pelo país (Lisboa, Porto, Funchal e Ponta Delgada) – já concedeu 7.400 milhões de euros de microcrédito. Os montantes médios dos empréstimos, nos dois casos, rondam os 12 mil euros, para pagar em quatro anos. Com a crise financeira, diz Helena Mena, responsável pelo microcrédito do BCP, o incumprimento aumentou, nos últimos dois meses, de 1,9% em Agosto, para 2,4% em Setembro. Contas feitas aos postos de trabalho criados no âmbito do microcrédito, a ANDC fala em 1.387 e o BCP, através dos projectos criados no âmbito da sua rede, em 2.088. Neste período, o BCP recebeu 10 mil pedidos e, destes, apoiou 898 projectos.


Perfil: Muhammad Yunus
Nascido no Bangladesh, Muhammad Yunus formou-se em Economia, doutorou-se nos EUA e foi professor na Universidade de Dhaka. Em 1976, constatou as dificuldades de pessoas carentes em obter empréstimos na aldeia de Jobra, num Bangladesh pobre, recém-separado do Paquistão. Por não poderem dar garantias, os bancos recusavam-lhes as pequenas quantias que permitiriam comprar materiais para trabalhar e vender, ou cobravam juros altos. Foi então que criou o Banco Grameen (“aldeia”, em bengali), especializado em microcrédito sem garantias nem papéis – ao qual recorrem sobretudo mulheres – 97% dos 6,6 milhões de beneficiários. A taxa de recuperação do Grameen Bank é de 98,85%. Hoje, o que começou por ser uma instituição de microcrédito é um grupo de dimensão considerável, que actua em quase todas as as áreas. O trabalho de Yunus para erradicar a pobreza valeu- lhe o Prémio Nobel da Paz.