Maria José Nogueira Pinto, in Diário de Notícias
Lembro-me de três irmãos, institucionalizados, que tinham sido retirados à mãe por esta ser débil mental. As crianças julgavam que o motivo da institucionalização se devia às péssimas condições da habitação onde viviam e quando souberam que a câmara tinha dado uma casa à mãe pensaram que já não havia razão para a família se manter separada. O mais velho, talvez com dez anos de idade ou pouco mais, tinha mesmo concebido todo um plano que me expôs com grande razoabilidade: eles ajudariam a mãe e não faltariam à escola e só era preciso que a "senhora assistente social" acompanhasse a situação e arranjasse aquele subsídio a que a mãe tinha direito. E talvez porque esta solução desafiava o mais rigoroso by the book, tornando-se inadmissível, não foi assim.
Recordo também o caso de uma mulher que escassas horas após o parto desapareceu da maternidade, deixando o recém-nascido. Alertada para o facto e instada a participá-lo à polícia, decidi esperar umas horas. A mulher regressou ao fim da tarde e explicou-me com a maior naturalidade que tinha ido trabalhar. Era empregada numa peixaria, o seu contrato era precário e não podia ser despedida agora que tinha um bebé. Esta supermãe, devidamente apoiada, conseguiu guardar o emprego e criar o seu filho.
De tudo isto e muito mais me lembrei a propósito do recente Congresso sobre Adopção. É difícil tratar este tema desligado do que é ou deveria ser o Sistema de Protecção de Crianças e Jovens e também da dimensão sofrida de um assunto que toca o mais íntimo da condição humana: abandono e desamor, sobrevivência e destino.
É a velha questão da lei e da praxis: é mais fácil legislar do que criar uma verdadeira linha de produção capaz de garantir a articulação permanente de todos os intervenientes, com vista a um resultado: o justo e adequado projecto de vida de cada criança em risco.
Esta linha começa na família biológica, passa por uma instituição e, na melhor das hipóteses, acaba numa reintegração familiar ou numa adopção. Na pior, as crianças crescem num lar. Como o princípio é o da transitoriedade do internamento, muitos lares não investem em tornar-se espaços preparados, em qualidade afectiva e técnica, para um transitório definitivo.
O trabalho com a família biológica nem sempre pode ser preventivo e, a posteriori, é difícil, de lento retorno, colidindo frequentemente com o tempo útil da criança que rapidamente se esgota, deixando-a sem horizonte nem futuro. Alguns candidatos à adopção procuram uma criança em função de uma circunstância - crise conjugal, solidão, frustrações várias ou compaixão - dando origem a duplos abandonos quando verificam que, afinal, não era isso o que queriam. Os magistrados nem sempre têm uma sensibilidade e familiaridade com os casos (todos únicos...) nem com o sistema a jusante e a montante, como se viu pela sorte da Esmeralda.
Todos este processo é marcado por expectativas, percepções contraditórias e interesses conflituantes e, ainda, pela mediatização das emoções. A triste história da Casa Pia criou na opinião pública a ideia de que as instituições ou são tiradas de Dickens ou são antros onde os menores estão sujeitos a todo o tipo de aberrações. A violência doméstica, o álcool e a droga tornam, para muitos, a família biológica um perigo que há que eliminar precocemente. A adopção é vista, sempre, como um happy end quando é com essa refiliação, esse segundo nascimento para os afectos, que tudo realmente começa.
A crueza dos números de crianças em risco na sua família biológica, de crianças institucionalizadas e de crianças que em período de pré-adopção são devolvidas à procedência, mostra o mundo real onde trabalhamos e vivemos. E que aquilo que se exige, todos os dias, ao sistema é desmesurado: refazer o destino de cada uma delas, depressa e sem erros.