Ana Dias Cordeiro, in Jornal Público
O texto Timor-Leste: uma ilha insustentável teve o efeito de "uma bomba negativa" mas o mérito de despertar consciências
Ao ritmo das sucessivas crises na meia ilha de 800 mil habitantes, a "visão romântica" de Timor-Leste foi-se desvanecendo em Portugal. Mas hoje, quando o primeiro-ministro de Timor-Leste Xanana Gusmão for recebido pelo Presidente da República, Cavaco Silva, e amanhã pelo primeiro-ministro, José Sócrates, dificilmente a aura do líder histórico e do país resistirá.
O texto do jornalista e escritor Pedro Rosa Mendes, ontem publicado no PÚBLICO, é um retrato impiedoso de uma liderança desonesta, egoísta, quase criminosa, responsável pela ignorância e indigência de uma sociedade sem rumo, num "país intratável" de difícil classificação: "Pior que um Estado falhado." Não se vislumbra luz ao fundo do túnel neste retrato que termina com uma voz do além a avisar que "tudo ainda não aconteceu" em Timor-Leste. Todo o mal pode pois abater-se neste país.
E isso quase fisicamente se sente.
"Este texto é um murro no estômago, um diagnóstico duro", diz Ana Gomes, ex-embaixadora portuguesa na Indonésia. "É uma espécie de desabafo, uma bomba negativa, e ao mesmo tempo uma chamada à realidade, para acordarmos da visão que temos de Timor", diz a activista Luísa Teotónio Pereira, coordenadora da comissão para os direitos do Povo Maubere entre 1983 e 2002.
Simone Duarte, ex-assessora da administração da ONU em Timor-Leste, a UNTAET, e autora de um documentário sobre Sérgio Vieira de Mello, fala de "tristeza" com o caminho seguido e evoca o contraste sentido entre a realidade descrita e a onda de solidariedade manifestada no nascimento do primeiro país independente do século XXI. A imensa "esperança e emoção" de timorenses que viam pela primeira vez em muitos anos Xanana Gusmão, e como este era aclamado efusivamente pelo povo; ou o primeiro regresso de Ramos-Horta a Díli em 1999, a "extrema emoção de quando ele pisou pela primeira vez em muitos anos" em Timor.
Nesse virar de século, Timor era tudo isso: a euforia do presente, a esperança no futuro, a aura dos seus líderes. Mas também era "o medo de muitos timorenses de falar sobre política por medo da retaliação, sabendo da existência de um esquema político que não beneficia o povo" - e isso Simone reencontra neste retrato. Fica a questão: "Lutar pela paz e pela liberdade pode ser mais simples do que construir um país? Foi o que pensei ao ler o texto e que me lembrou uma imagem do filme A Batalha de Argel [sobre a guerra da Argélia]", diz.
"Criaram-se muitos mitos"
Entre a dezena de pessoas contactadas para comentar este ensaio sobre as frustrações de dez anos do projecto idealizado e até agora falhado, nenhuma das três figuras timorenses teve disponibilidade: Manuel Abrantes, embaixador timorense em Portugal e junto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, D. Basílio do Nascimento, bispo de Baucau, ou militante da UDT, Ângela Carrascalão, que afirmou a partir de Díli não ter lido o artigo.
Mas para quem leu, como Luísa Teotónio Pereira, embora não faça sentido questionar a independência, "é uma independência difícil de concretizar."
Ana Gomes acreditou na independência mas, entre o entusiasmo e a euforia, também "sabia que a realidade ia ser muito mais tortuosa". E longe dessa realidade, "criaram-se muitos mitos". Identifica-se com muitas das coisas expostas, mas também rejeita a ideia de que Timor-Leste é um país "impossível ou insustentável". "Não considero que os falhanços da liderança dos últimos anos permitam extrapolar isso."
"Não isento ninguém", diz, acentuando que todos os líderes timorenses são responsáveis, mas também Portugal. "O Governo português falhou ao não confrontar os dirigentes em questões vitais sobre a justiça", considera a eurodeputada socialista Ana Gomes, sobre a amnistia defendida pelos dirigentes timorenses para os crimes indonésios de 1999. "Falhámos ao não dizermos o que pensávamos sobre a governação [dos líderes timorenses] e falhámos na língua."
A existência de duas oficiais (tétum e português) e duas de trabalho (bahasa indonésio e inglês) "complica mais" a tarefa. Para Antonio Almeida Serra, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) e especialista de Timor-Leste: "Talvez tivesse sido melhor uma política inequívoca e declarada." Mesmo assim, cita dois inquéritos - de 2001 e 2007 - para dizer que a percentagem de pessoas que se identificam como falantes de português duplicou.
Como as outras pessoas ouvidas, Luísa Teotónio Pereira não partilha da ideia de que Timor-Leste é insustentável, mas sim que, pela forma como as coisas estão a acontecer, caminha nesse sentido. Mas recusa falar da integridade dos políticos. "A integridade das pessoas não é isolada. Tem a sua história pessoal, colectiva." E sustenta: "O país tem sido feito pelos timorenses e pela comunidade internacional em igual proporção. Influenciam-se mutuamente." São pois ambos responsáveis. Acredita que este texto serve para "acordar" os portugueses da visão romântica e distante" que têm de Timor-Leste" e espera que suscite um debate "que abane profundamente as coisas".
Xanana Gusmão é hoje recebido pelo Presidente da República e amanhã pelo primeiro-
-ministro José Sócrates.