25.11.08

"Quanto mais cedo melhor mas nunca é tarde" para sair

Ana Cristina Pereira, in Jornal Público

No Dia internacional da Eliminação da Violência contra as Mulheres, histórias de ameaçadas de morte que fugiram e deram a volta


Durante 24 anos pareceu-lhe impossível livrar-se daquele homem, refazer a sua vida, viver sem violência. Afinal, tudo se resolveu num instante. Entrou em Março na casa abrigo das Soroptimist - uma ONG de mulheres. Sairá daqui a uns dias, já divorciada.
Teve todos os sinais no namoro de seis anos. Ele "era exigente". Proibia-a de usar mini-saias, transparências. E ela vestia "calças ou saias abaixo do joelho, à velha". A mãe avisava-a: "Se já é assim, como não será no casamento?"

Um ano e meio depois de casarem, bateu-lhe. Não gostou de a ver a falar e a rir com os cunhados, num convívio familiar. E ela silenciou aquela agressão. E tantas outras depois daquela.

Ele controlava-lhe os passos. "Se chegava um minuto mais tarde do trabalho, insultava-me. Uma vez, houve um acidente na estrada, atrasei-me cinco minutos, veio ao meu encontro." Bateu-lhe. Dentro de casa. Batia-lhe sempre dentro de casa. Às vezes, ameaçava-a de morte. Tinham os filhos cinco e dez anos, C. já fugia para um pinhal ou para uma casa em construção. E voltava. Ficou 24 anos. Havia sempre alguma coisa. "Foi a casa, a mobília, o carro; dar o 12º ano aos filhos."

Não sabia que havia uma rede de casas-abrigo - "estruturas de apoio especializado que asseguram o acolhimento residencial temporário a mulheres vítimas de violência doméstica e respectivos descendentes". Foram previstas em 2001, no diploma que fez da violência doméstica um crime público. Devia haver uma por distrito - excepcionalmente duas em Lisboa e no Porto - a prestar apoio social, psicológico e jurídico às acolhidas. Agora, há 34 distribuídas por doze distritos. Quase todas na faixa litoral, quase todas em áreas urbanas.

Em Março, o marido obsessivo-compulsivo quis que ela fosse falar com o psiquiatra dele. E ela foi. Contou-lhe tudo: não podia vestir o que queria, não podia sair de casa, não podia falar com ninguém, sequer ao telefone. E o psiquiatra disse-lhe: "Fuja depressa. Fuja que ele mata-a mesmo."

Ele estava ao lado. Ouviu tudo. Quando saíram do consultório "estava ceguinho". De repente, ela já era amante do médico. Ela estava já a imaginar que quando chegassem a casa "ia haver lenha". E houve. "Gritei, não adiantou nada - os vizinhos já me tinham ouvido gritar muitas vezes e nunca se tinham metido. Meteu-me as mãos no pescoço; se eu não lutasse, ele matava-me. Meti-me no quarto do meu filho."

"Grande incerteza"

Não queria ser uma das 43 mulheres que, pelas contas da União de Mulheres Alternativa e Resposta, este ano morreram às mãos de um homem com quem tinham ou já tinham tido uma relação íntima. De manhã, foi à Associação Portuguesa de Apoio à Vítima.

Falaram-lhe em ir à esquadra apresentar queixa. Já sabia que a mandariam para o Instituto de Medicina Legal: demorar-se-ia, chegaria a casa depois dele, ficaria à sua mercê. Desenharam um plano alternativo. Ela iria para casa. Mandaria buscar as máquinas (trabalhava em casa para uma fábrica de calçado). Faria a mala. E iria para uma casa-abrigo.

Fez queixa. Engrossou o número de queixas registadas em Portugal: até 30 de Outubro deste ano, a PSP já registou 14.823 e a GNR 8604; o ano passado, a PSP registou 13.050 e a GNR 8857. E não vai desistir, como sugeriu a advogada do marido. Mesmo sabendo que a maior parte dos agressores não apanha mais do que pena suspensa: basta ver os exemplos da casa-abrigo.

Deixou-lhe uma carta, a pedir-lhe "para ser feliz" e para a deixar sê-lo. E está. Está feliz. O divórcio saiu há dias. E ela não tarda a recomeçar a vida em França. "Quando entrei na casa-abrigo, parecia uma mulher de 60 e tal anos - parecia uma velha", lembra. Tinha 44.

É quase sempre assim, diz a directora da casa-abrigo, Joana Sampaio. As mulheres que ali chegam atingiram um limite de sofrimento: "Deixaram a casa, algumas deixaram o emprego. Há uma grande incerteza face ao futuro." Mas, com ajuda, dão a volta. E essa é a mensagem que C. quer deixar: "Quanto mais cedo melhor, mas nunca é tarde" para sair.

"Quando entrei na casa-abrigo, parecia uma mulher de 60 e tal anos - parecia uma velha", lembra C. Tinha 44 então.