Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
Nem Anjo nem Diabo, proposta dos rapazes do Instituto Profissional do Terço, sobe hoje ao palco do pequeno auditório do teatro municipal do Porto
Está escuro. Dois rapazes cruzam-se no meio do bairro antes de saltar o muro da escola para roubar o dinheiro que há no bar. De manhã, a notícia corre. A namorada de Fábio desconfia: "Andam a dizer que foram os teus amigos. Tens a certeza que estiveste em casa?"
A rapariga, insegura, possessiva, não é a única a desconfiar da honestidade do rapaz doido por basquetebol. Nem Anjo, nem Diabo, que às 21h30 de hoje sobe ao palco do pequeno auditório do Teatro Rivoli, foca o estigma que se abate sobre quem mora nos bairros sociais, a associação abusiva que o preconceito estabelece entre pobreza e criminalidade.
Ao longo de dois meses, o Núcleo de Teatro do Oprimido do Porto (da associação Pele - Espaço de Contacto Social e Cultural) trabalhou com um grupo de rapazes integrados no projecto Terço em Movimento (do Instituto Profissional do Terço). Com eles construiu um espectáculo de teatro-fórum.
Os rapazes, com idades compreendidas entre os 14 e os 21 anos, construíram várias histórias ditadas pelos seus dias. E escolheram trabalhar a história de um miúdo que não pisa o risco em nome de umas sapatilhas de marca, de um telemóvel de terceira geração ou de um i-pod; que não se mete em sarilhos sem por isso escapar ao desconfiado olhar alheio.
Ouve-se os rapazes e percebe-se por que trazem este tema e não outro. Hélder Fábio, por exemplo, é do Cerco do Porto. Quando lhe perguntam onde mora, responde: "À beira da Corujeira." É a estratégia que encontrou para se descolar do rótulo. "As pessoas que me conhecem sabem que não tem nada a ver, mas os outros podem pensar: 'Alto aí! Moras aí, vamos lá ver?"
O facto de residirem (ou terem residido) no Terço também lhes dá uma vivência dura do estigma. Hélder Silva, que está já num apartamento de transição, lembra-se de como foi difícil integrar-se na escola: "Tudo o que acontecia de mal na escola era coisa dos miúdos do Terço." E os rapazes do Terço, como quaisquer outros rapazes, não querem ser "vistos como bandidos nem como coitadinhos", na expressão de André Cassama. Querem ser vistos como o indivíduos.
Esta noite no Rivoli - e amanhã no Festival Meio Dia, Meia Noite (na rua da Alegria, 341) - Fábio será suspeito de roubar o i-pod que o amigo Henrique lhe emprestou. Só que, desta vez, não estará sozinho. Quem estiver na audiência poderá subir ao palco em busca de soluções. No Teatro do Oprimido há sempre conflito por resolver. No fim, o público discute a história, assume o papel da personagem oprimida propõe alternativas.
Nem só o espectador se espelha. É suposto com isto os rapazes verem reforçadas as suas potencialidades, no sentido de uma atitude crítica e construtiva, como ambiciona o psicólogo Hugo Cruz, que os orientou e que é um dos maiores impulsionadores nacionais de teatro do oprimido.