13.9.08

Pobreza: Cem mil famílias vivem sem esgotos

Carlos Ferreira, in Correio da Manhã

A estrada desemboca nas entranhas da serra do Caramulo. É sempre a descer, floresta adentro, em terra e pedra cortada por alcatrão onde os carros não passavam de outra maneira. A meio da encosta, a Quinta de Demenderes é um paraíso para os forasteiros e um inferno para os moradores. Os dois habitantes, primos, vivem perdidos no tempo. "Estamos às escuras", diz Custódio Domingues, de 82 anos. A frase não é uma metáfora – mas podia ser – porque o ancião se refere somente à falta de electricidade.

À entrada de casa – de pedra e do que restadotelhadoedo chão, onde as entradas de luz deixam adivinhar as obras por fazer – Custódio Domingues é o retrato das 12 740 famílias que, segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE),vivem sem electricidade. Custódio também não tem água canalizada, esgotos ou casa de banho. É uma vítima do isolamento, a trinta quilómetros da sede de concelho, Tondela, e a dois da povoação mais próxima, Souto. Habituado a desconhecer os confortos para além do enclave, a 12 quilómetros do topo da serra, vê a realidade com simplicidade e resignação:"Não temos electricidade porque a Câmara não a bota cá. Toda a vida vivi aqui e sempre foi assim." Acha que ainda vai tê-la? "Vamos a ver, mas não tenho esperança alguma", diz o único homem da Quinta de Demenderes, apenas para não deixar a pergunta sem resposta.

Na outra casa de habitação permanente – há duas que são ocupadas apenas aos fins-de-semana e nas férias – vive Maria Figueiredo, de 72 anos, prima em segundo grau de Custódio Domingues. "Esta é a povoação mais triste da freguesia [de São João do Monte]", lamenta a mulher, que há muito tempo viu partir as duas filhas, que já lhe deram netos. A sua sina é igual à do vizinho: sobreviver com quase nada. Tudo o que trabalha a energia eléctrica não existe na Quinta de Demenderes. A não ser nas casas dos forasteiros, que têm sistemas solares para produzir electricidade.

É com uma candeia a petróleo na mão a alumiar a casa (sala e quarto) que Custódio Domingues, que não deixa descendência, mostra como ouve música num rádio a pilhas enquanto a vizinha explica que a carne ainda é conservada "numa pequena salgadeira". E as necessidades físicas? "É no mato, que até é mais saudável", responde Jorge Martins, um morador de Teixo, investido de guia, sem ser desmentido. Mas há algo que não falta: telefone.

Para pedir ajuda numa urgência e porque os ladrões já descobriram o caminho municipal para a quinta – melhorado em 2005 com 39 mil euros da Câmara."Já vieram cá quatro ou cinco vezes casais de ladrões, mas nunca encontraram dinheiro", diz o homem, enquanto lamenta o custo de vida, dando como exemplo os 15euros mensais do preço do gás de botija que alimenta um pequeno fogão.

A pouca distância da Quinta de Demenderes, já em São Pedro do Sul (a 35 quilómetros de Tondela), João Russo Correia e a mulher, Maria Piló, ambos de 63 anos, vivem bem melhor do que o casal de primos da serra do Caramulo. Em Lufinha, os ventos do conforto moderno sopraram mais cedo. Mas ainda há quem seja obrigado a ir buscar água à fonte. "As pessoas fazem furos ou tiram a água de nascentes, mas eu não tenho nenhuma das hipóteses", diz João Correia, carregado com um cântaro ao ombro acabado de encher num fontanário próximo de casa. "Aqui não há água da rede pública. Não há saneamento básico [há fossas]", lamenta o morador, destacando "a miséria" do lugar e, apesar de tudo, o trabalho do actual presidente da Junta de Freguesia de Ribafeita, Custódio Ferreira, que "já fez mais agora do que os outros nos 12 anos anteriores".

"Não temos onde lavar uma camisa e cada vez que queremos tomar banho temos de ir buscar água a cântaro", diz João Correia, cuja família é uma das quase 58 mil existentes em Portugal que, segundo o INE, têm de carregar água para casa (não são servidas por redes públicas ou particulares). Mas o futuro de Lufinha parece assegurado: não está afectada pela desertificação e fica a meia dúzia de quilómetros da sede de concelho. João Correia ainda pode ter esperança num futuro melhor.

A mesma sorte não terá o Casal de Santa Maria, a dez quilómetros do Fundão, nem Horácio Pereira, de 56 anos, e a mulher, Maria do Carmo Manuel, de 67 anos. Na terra da freguesia de Telhado, onde já viveram mais de 80 pessoas, resistem hoje quatro, dois casais.

As ruínas dominam o cenário de pedra e lembram a Quinta de Demenderes. É quase tudo igual, mas há electricidade – o que não é pouco. A iluminação pública chegou há dez anos, mas já serviu poucos habitantes. O mesmo aconteceu com os telefones que se lhe seguiram e a estrada recentemente alcatroada.

As habitações não têm esgotos ou casa de banho. Segundo o Inquérito às Despesas das Famílias de 2005/2006, do INE, há nas mesmas condições mais de cem mil famílias, no primeiro caso, e quase 160 mil no segundo. Há menos de cinco anos, no âmbito do projecto de luta contra a pobreza-freguesia doTelhado, foram construídos balneários públicos à entrada do lugar, com sanita, lavatório e duche, para homens e mulheres. Mas pouco adiantou, as famílias continuam a usar o penico – de plástico, não em esmalte como em meados do século XX.

"A casa de banho pública até foi construída num terreno meu, mas pouco se usa e durante a noite fazemos o que temos a fazer em casa. Depois, como os esgotos, vai tudo para a fazenda", explica Horácio Pereira, enquanto observa a mulher, que lava num dos chafarizes (o primeiro foi aberto em 1966) da aldeia os tomates que lhes vão servir de almoço. Em redor, as casas a desfazer-se lembram o isolamento, a falta de infra-estruturas e a pobreza extrema que explicam, em grande parte, a existência de centenas milhar de portuguesesaviver sem as mínimas condições de conforto, mesmo com as auto--estradas e as cidades a poucas dezenas de quilómetros.

O pastor e agricultor, que teve oito irmãos, lembra-se da aldeia com três fornos de cozer pão e de uma casa onde moravam 12 pessoas. "Nasci cá, fui para Lisboa, para a Covilhã, estive na guerra em Angola, de 1973 a 1975, e voltei porque não perdi a vontade de morrer aqui." Mesmo depois de ver o Mundo em mudança, Horácio regressou para onde nasceu e viu crescer os dois filhos. Talvez a única explicação para continuar a resistir.

Piores condições em zonas isoladas

As famílias que vivem sem estas condições de conforto localizam-se em "zonas medianamente urbanas ou predominantemente rurais", explica o Departamento de Matérias do Instituto Nacional de Estatística (INE), adiantando que "são agregados constituídos por pessoassós". Neste contexto, o CM optou por referir-se sempre ao número de famílias, a não de pessoas, que estatisticamente são de 2,8 por cada agregado. Segundo o INE, têm mais de 65 anos, não são escolarizadas e integram o grupo daquelas que têm menos proveitos.

O Inquérito às Despesas das Famílias 2005-2006 demonstrou "ligeiras desigualdades", excepto no que se refere à electricidade no interior dos alojamentos, com valores muito próximos em todas das regiões, situando-se entre 99,0% no Alentejo e 99,9% nas regiões de Lisboa e dos Açores. As casas com água canalizada distribuem-seentre 96,2% no Algarve e 99,9% nos Açores; enquanto o sistema de esgotos existe em maior proporção na região de Lisboa com 99,6% do total e em menor na Madeira com 95,6 %. As habitações com instalação sanitária completavariam entre 93,9 no Alentejo e 98,9% na região de Lisboa.

Electricidade atrasada 130 anos

Em pleno Parque Natural da Peneda-Gerês, a aldeia de Covelo – a última do distrito de Viana do Castelo sem luz eléctrica – está a receber a energia. Precisamente 130 anos depois das primeiras experiências feitas em Portugal, com seis candeeiros importados de Paris pela família real, em 1878, instalados primeiro na esplanada da Cidadela em Cascais para a comemoração do aniversário do rei D. Carlos e depois no Chiado, em Lisboa. O turismo poderá ser agora o destino da aldeia nortenha.

INE explica

Água
O sistema de água canalizada inclui, para além da ligação à rede pública, os sistemas alternativos. O que importa é se a família não tem de transportar a água para o interior da habitação.

Casa de banho
A instalação sanitária completa inclui, pelo menos, sanita, lavatório e instalação de banho ou duche, todos eles fixos.

Esgotos
O sistema de esgotos tanto poderá estar ligado à rede pública como a uma fossa.

Luz acabada de chegar

Nenhuma das 27 casas de Covelo, em Gave (Melgaço), é de habitação permanente. Algumas são utilizadas aos fins-de-semana, nas férias ou no Verão pelos pastores. A electricidade, ainda por inaugurar, começou a iluminar a terra em Junho, decorrendo agora o processo de ligação às casas. Manuel Gonçalves, pastor, 72 anos, regressa à aldeia e mostra a casa em ruínas onde viveu,à entrada do povoado. Sentado numa pedra, com os candeeiros a iluminarem-lhe o rosto, recorda: "Nasci aqui em 1956, fui para França e regressei em 1984. Para mim, a luz ainda chegou a tempo." Apesar disso, não conta recuperar a habitação em pedra. Tem sete filhos, com idades dos 26 aos 45, e "eles que façam o que bem entenderem!"

Quando a aldeia vivia da pastorícia e da agricultura era habitada por mais de cem pessoas e chegou a ter três rebanhos com 1500 cabeças. Manuel Gonçalves critica a falta de cuidado daqueles que jácomeçaram a adulterar as fachadas com portões de metal e granito polido. A EDP investiu 80 mil euros na obra e cuidou de usar postes em madeira no Parque Natural da Peneda-Gerês, mas as caixas para as baixadas, colocadas nas paredes, são em plástico branco.

Armando Vieira, presidente da Associação Nacional de Freguesias: "Estes casos são muito sérios"

CM – Os números do INE surpreendem-no?
Armando Vieira – Quanto à electricidade, o número de locais sem rede é, confesso, uma surpresa. No que se refere ao abastecimento de água, às famílias sem sistema de esgotos e à falta de instalação sanitária completa, não me surpreendem os dados tão elevados.

– São preocupantes?

– São efectivamente preocupantes e convocam-nos a reflectir sobre o papel das administrações públicas central e local na vida dos cidadãos.

– Em sua opinião, que tipo de cidadãos e de regiões são atingidos?

– Os cidadãos de pequenas comunidades, localizadas nas regiões do Interior, deprimidas demograficamente. Contudo, também no Litoral e até em zonas urbanas se verifica falhas, nomeadamente ao nível do saneamento básico e da não existência de instalações sanitárias.

– O fornecimento destes bens ainda é uma preocupação das juntas?

– Sempre esteve no centro das preocupações dos responsáveis das freguesias a infra-estruturação integral do tecido urbano do seu espaço geográfico. Mas às juntas de freguesia cabem poucas competências e ainda menos recursos.

– Como se pode ultrapassar o problema?

– Muitas das questões que preocupam os cidadãos resolver-se-ão de forma ágil se às juntas de freguesia forem outorgadas e alargadas as suas competências.

PORMENORES

Habitação
75,8% das famílias vivem em casas das quais são donas.

Turismo
Aldeias abandonadas estão a ser aproveitadas para o turismo. É o caso de Aveleira, em Melgaço.

História
Uma pedra de uma casa de Casal St.ª Maria tem inscrição romana.

Cântaro
Quase 58 mil famílias portuguesas ainda recorrem ao cântaro para se abastecer de água em fontanários. É o caso da família de João Russo Correia, de 63 anos, que vive na aldeia de Lufinha, no concelho de S. Pedro do Sul. A sorte é ter uma fonte a poucos metros de casa.

Canalizada
Joaquina da Paz, de 65 anos, acompanhada pelo neto, também de Malhapão de Baixo, diz que as casas têm água canalizada a partir da nascente e fossas.

Passado
Maria do Carmo, de 67 anos, e o marido, de 56 aos, ainda recorrem ao penico. Vivem no Casal de Santa Maria, terra da freguesia do Telhado.

Rochas
"Aqui [em Frágua] a água é de boa qualidade porque vem das rochas e vem canalizada para as casas", diz António Pereira, de 65 anos, carregando às costas um feixe de milho.

CONFORTO NAS HABITAÇÕES
Famílias sem água canalizada 2,5%
Famílias sem electricidade 0,3%
Famílias sem sistema de esgotos 2,6%
Centro 34630 dfamílias sem esgotos
Alentejo 2850 famílias sem electricidade
Algarve 6104 famílias sem água canalizada
Número de famílias em Portugal 3.829.464