Beja Santos, in Vidas Alternativas
Anthony Giddens é um sociólogo que dispensa apresentações. Com uma obra de investigação sociológica discutida em todo o mundo, ideólogo da chamada “Terceira Via”, foi conselheiro do ex-primeiro ministro Tony Blair, e esteve implicado, durante a Presidência Britânica, em 2005, no estudo do modelo social europeu onde, com duas dezenas de peritos de estados-membros da União Europeia, procurou identificar a política económica e social de vanguarda de que resultou a sua reflexão pessoal publicada no livro “A Europa na era Global” (por Anthony Giddens, Editorial Presença, 2007).
É um testemunho impressionante, pela ousadia, paixão e controvérsia que suscita, abordando questões indispensáveis para o futuro da União: que mudanças introduzir no modelo social europeu; que significado se pode atribuir a um quadro de mudança e inovação na Europa; como obter mais justiça social e erradicar um número elevado das assimetrias existentes; como passar de um bem-estar negativo para um bem-estar positivo; para que a Europa saiba responder aos desafios da era pós-industrial, quais são as mudanças que se impõem nos estilos de vida; havendo que rever a Agenda de Lisboa, quais são as reformas a imprimir no ensino superior e na inovação, no ambiente e na energia. Argumentação inteligente e provocatória que vale a pena aqui apreciar.
Primeiro, que significado tem andarmos a falar em modelo social europeu (MSE). Para Giddens, o MSE seria: um Estado desenvolvido e intervencionista, financiado por níveis relativamente altos de impostos; um sistema robusto de previdência social, que proporciona uma protecção social eficaz; e a limitação, ou contenção, de formas económicas e outras de desigualdade. O MSE está a falhar, vive instável e inseguro. Só que não se fala dos equívocos do seu conceito. Quando se diz que já não vivemos numa época dourada do MSE esquece-se que Espanha, Portugal e a Grécia, para já não falar nos 10 Estados-membros recentemente aderentes, não conheceram nenhuma época dourada, já que as prestações sociais eram fracas e inadequadas. Mudou muita coisa: já não há Guerra-fria, desapareceu o keynesianismo, as grandes empresas já não subcontratam as suas mercadorias e serviços a nível nacional mas a nível mundial, o mercado único e o Euro não criaram uma regeneração económica; além disso, a competição das economias em desenvolvimento já não se concentram apenas nas mercadorias de baixo custo. Entrámos na globalização e estamos a enfrentar mudanças estruturais endógenas. Nunca houve nem há um único modelo social na Europa, já ninguém acredita que numa economia moderna seja possível ao mesmo tempo ter orçamentos equilibrados, um elevado nível de emprego e um baixo nível de desigualdade económica. Há, no entanto, que ponderar porque é que os estados nórdicos têm os níveis mundiais mais baixos de desigualdade económica e a pobreza infantil é insignificante. As promessas da Agenda de Lisboa não se concretizaram (a média do PIB por cabeça na Europa continua a ser muitíssimo mais baixo do que nos EUA), é verdade que houve progressos na taxa média de emprego e na taxa de participação feminina, mas para Giddens a explicação principal da falta de resultados reside na incapacidade demonstrada nas reformas estruturais.
Continuamos incapazes de encontrar um modelo de flexibilidade no trabalho adequado a uma economia de conhecimentos e de serviços pelo que, com um pouco de troça e numa tentativa de mostrar que uma Europa em ascensão precisa de se definir com virtualidades nacionais, o autor propõem que o modelo social europeu reformado numa Europa capaz de obter melhores resultados teria: níveis finlandeses da penetração das TIC; produtividade industrial alemã; níveis suecas de igualdade; níveis dinamarqueses de emprego; crescimento económico irlandês, comida italiana acompanhada de vinho húngaro (ingerido com moderação); níveis checos de cultura literária; níveis franceses de cuidados de saúde; níveis luxemburgueses de PIB per capita, cosmopolitismo britânico; clima cipriota. A ambição deve ser temperada com sobriedade. Observa que a Europa pode ser uma força importante no mundo mas é muito improvável que volte a ser outra vez a força principal do mundo.
Segundo, temos que saber o que queremos da inovação e reconhecer que temos bloqueamentos quase fatais: no ensino, na concepção do sindicalismo, no conceito de mobilidade, etc. Giddens dá o exemplo da Directiva dos Serviços e os muitos temores que esta provocou e provoca. Medos de dumping social, reforço ao proteccionismo, medo de abrir uma frente contra os monopólios centrados no Estado e no mercado. A Finlândia e a Nokia são a imagem de um sucesso de investidores estrangeiros e do saber expor-se ao capital global intensificando as qualidades comerciais. Competitividade com regras, como uma justiça social que cuide dos desempregados e não apenas daqueles que estão a trabalhar, e com o reconhecimento que os trabalhadores que perdem os seus empregos têm direito à protecção mas que essa protecção deve tomar a forma da flexi-segurança.
Terceiro, temos que ter coragem de olhar para o mapa social da Europa e saber o que são as novas classes, quais as divisões sociais que se estruturaram e propor uma justiça social para os mercados de trabalho em transição. Recorde-se que a Estratégia de Lisboa não propunha recomendações sobre a reforma da justiça social e da providência social. É que também aqui o mundo mudou profundamente. No passado, a política tomava sempre em consideração a divisão entre a classe operária e as outras. No nosso tempo a posição dos não qualificados agravou-se drasticamente, sobretudo os homens que têm fracas oportunidades de emprego e até os empregos Big Mac implicam qualificações sociais que podem ser difíceis de dominar por trabalhadores de meios tradicionais da classe operária. As divisões actuais deverão ser estudadas à luz da democratização do quotidiano e do novo quadro de oportunidades e riscos. Por exemplo: há em média poucos empregos de duração segura para as pessoas na maioria das situações de trabalho; o risco e oportunidade distribuem-se ao longo da vida de maneira diferente do passado; é mais provável que sejam os jovens sem qualificações a progredir pouco; os mais velhos detêm em média uma quota maior de prosperidade e dos rendimentos do que no passado, em comparação com os jovens, mas muitos correm ainda o risco de pobreza na aposentação. Impõe-se uma nova definição de justiça social que crie os padrões mais altos possíveis de educação e formação, que assegure empregos àqueles que querem e são capazes de trabalhar e em que a luta contra a pobreza não limite a capacidade do individuo para a autonomia. Para reduzir a pobreza é decisivo reduzir as desigualdades económicas: actualmente a proporção do rendimento ocupada por 1% de assalariados no escalão superior aumento na média dos países da União Europeia, mas convém não perder de vista que 1% da população no escalão superior possui cerca de 25% da riqueza total da França e da Dinamarca, embora apenas 15% na Suécia. O futuro de MSE está ligado a um investimento bem sucedido nas crianças e a passagem de um bem-estar negativo para um bem-estar positivo passará por: os serviços da providência social serem concebidos para ajudar as pessoas a ajudarem-se a si próprias; a sabermos distinguir as áreas em que o mercado funciona com controlos mais ou menos amplos e outras onde será sempre importante a solidariedade social, o apoio à diversidade e ao multiculturalismo.
Quarto, as mudanças de estilo de vida decorrem de novas atitudes culturais e da aceitação das reformas estruturais do modelo social. Na verdade, iremos estar cercados de problemas como a obesidade, a exigência do cinto de segurança, dos múltiplos problemas relacionados com o envelhecimento, das ligações íntimas entre a saúde e o ambiente e da nossa participação na mudança dos padrões de consumo, envolvendo-nos na gestão de resíduos, na eficiência energética, no combate às substâncias perigosas, por exemplo. Seremos parte da modernização ecológica enquanto cidadãos ambientais. No final do seu importante ensaio, Giddens apresenta oito teses da futuro da Europa e que se prendem com: a definição de fronteiras a Leste, repensar para que serve a União Europeia e natureza do mundo com a qual ela deve relacionar-se, qual o seu projecto político, qual a sua natureza como associação democrática de nações semi-soberanas e uma natural flexibilidade para que ela possa recorrer a uma variedade de formas de poder com vista ao cumprimentos das suas metas geopolíticas.
É, sem margem para dúvidas, uma reflexão cheia de confiança sobre a Europa, um ensaio incontornável depois da Constituição Europeia ter sido chumbada, agora que o Tratado de Lisboa ainda não está plenamente rectificado. Não podemos iludir mais tempo que precisamos uma nova visão da coesão social e da solidariedade entre europeus.