4.9.08

Entrevista a Fernanda Rodrigues, coordenadora do Plano Nacional para a Inclusão

Ana Cristina Pereira, in Público Última Hora

“Há quem fique quietinho a ver se consegue sobreviver”


O relatório de avaliação ainda não está pronto, mas Fernanda Rodrigues lança algumas pistas sobre o que foi o Plano Nacional Para a Inclusão (PNAI), um documento bianual que agrega as medidas dos vários ministérios para o combate à pobreza.

Que balanço faz do PNAI que agora termina?
Este plano quis ser muito delimitado nas medidas a incluir. Os resultados comprovam a vantagem dessa orientação mais direccionada. Depois há, por regra, um bom nível de execução das medidas.

O país reduziu a pobreza das crianças e nos idosos?
Temos aqui medidas dirigidas ao rendimento das famílias, de alargamento da cobertura de serviços sociais, de preparação de gerações futuras, a apostar mais na educação, na formação. São medidas que reduzem a pobreza hoje e que têm carácter preventivo, sobretudo nas famílias.

A taxa de pobreza infantil era, no arranque do plano, 24 por cento. É agora menor?
Não temos estatísticas para aferir isso. Investir no aumento do rendimento de famílias pobres, na educação das crianças é interceptar e prevenir ciclos de pobreza, mas as repercussões não podem ser vistas no espaço dos dois anos.

O Fórum Não Governamental para a Inclusão Social (FNGIS) está preocupado por o PNAI não prever “mecanismos de promoção de conhecimento actualizado” sobre a pobreza... Nem tudo neste campo pode ser explicado estatisticamente. E mesmo trabalhando sobre as mesmas estatísticas posso ter comprovativos de intervenções que vão travar esse ciclo. Já está financiado um estudo sobre a dimensão subjectiva da pobreza – que vem da forma de viver das pessoas, da maneira como têm acesso aos serviços, da maneira como vivem as questões da habitação, a própria forma como entendem que são pobres ou não. Nem sempre os países com maiores níveis de pobreza são aqueles em que as pessoas consideram que são mais pobres. A imprensa tem publicado muitas histórias sobre uma classe média empobrecida.

Como encara a pobreza em Portugal?
Acho que essa população se vê mais agora, mas sempre existiu. Sempre tivemos duas vias de chegar à pobreza. Há os que têm uma trajectória de vida “tradicionalmente” pobre e há os que entretanto empobreceram, por desemprego, doença, condição de género... Às vezes perguntam: “Então qual escolher?” Não há escolha. Eu não posso dizer às pessoas que vivem em situação de pobreza, muitas vezes desencorajadas: “Vocês têm de ter paciência, agora vou ter acções preventivas sobre a pobreza.” Ou fazer o contrário: “Vocês estão a empobrecer, esperem que vamos cuidar dos que já estão pobres.” É preciso ter estratégias para actuar em simultâneo. Às vezes diz-se: “Há gente que nasceu desencorajada.” Pois nasceu! São muitas vezes a terceira ou quarta geração em situação de pobreza, vivem num ambiente sem estímulo, sem empreendedorismo. Ficam quietinhas a ver se conseguem sobreviver à vida, arranjar um jeito de passar por ela. Há que reconhecer isso sem vitimizar as pessoas, sem dizer: “Malandros, vieram ao mundo só para gastar o dinheiro do Estado e dos contribuintes.” Podemos pegar em algumas metas do PNAI para fazer um balanço. Por exemplo: estamos longe de 90 por cento de beneficiários de Rendimento Social de Inserção (RSI) com acordo de inserção assinado.Estamos longe, mas há um caminho que vale a pena apontar para não nos afogarmos só na desgraça. No primeiro relatório [relativo ao primeiro ano] estávamos nos 43 por cento e no segundo estamos nos 67 por cento. Não estou a dizer que se chegará aos 90 por cento este ano, mas é um caminho importante. Planos como este têm a possibilidade de fazer concentrar a atenção dos serviços em determinadas metas.

Há quem diga que o PNAI é a mera compilação de medidas sectoriais dos vários ministérios... Algumas das medidas são novas. Isso significa que as várias entidades se organizaram não só para colocar no plano aquilo que já existia, mas também para terem iniciativas diferente. Mas a coordenação tem recursos suficientes?

Eles [os membros do Fórum] insistem muito nessa ideia. O que acontece é que nenhum cargo na função pública dispõe neste momento de uma grande largueza de recursos. O próximo PNAI pode reforçar alguns recursos. Também acham que o PNAI não ouve as pessoas a quem se dirige. É uma das críticas do Fórum que mais me fazem pensar. Se há esfera onde a representação da população vulnerável à pobreza pode estar representada é através do Fórum. O Fórum é constituído por 56 organizações que na sua grande maioria tem trabalho directo com a população. É expectável que o próprio Fórum possa ser contributivo desse ponto de vista.

Os idosos, crianças, imigrantes continuarão a ser prioritários também?
A orientação europeia vai no sentido da continuação do ciclo anterior. Essa orientação tem tido bom acolhimento entre nós. Podemos manter a mesma ordem de prioridades, fazendo melhorias nas medidas e nos grupos alvo.

Teríamos então as minorias étnicas?
Está constituído um grupo de trabalho sobre a comunidade cigana, para ver se conseguimos iniciativas que tornem substantiva a nossa atenção a essa área. O Fórum defende que se acrescente a necessidade de melhorar a qualidade do emprego. Então eu pergunto: O que esperam do plano nacional de emprego? Há, vindas da União Europeia propostas em três campos a que estamos a tentar dar a maior das atenções. Em primeiro lugar, as questões de género, isto é, fazer com que o plano responda bem à questão de que as mulheres ainda hoje têm situações mais vulneráveis, de mais fácil empobrecimento. Propõem também uma atenção substantiva aos imigrantes e às pessoas com deficiência. A UE quer que estas três áreas sejam consolidadas ao longo de todos os planos, O que nos diz que estamos a lidar com coisas maiores que o nível nacional. Estas três áreas atravessam todos os países. Mas cada país terá de encontrar a forma de trabalhar estas três áreas. Fala-se sempre da feminização da pobreza. Ainda há pouco se tornou a falar na diferença salarial. Temos o diagnóstico feito, não sei é se temos a proporcionalidade das medidas necessárias. Estamos em Portugal face à vigência do terceiro Plano Nacional para a Igualdade.

Há o Plano Nacional para a Igualdade, o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, o Plano Nacional para Imigração, o Plano Nacional do Emprego. O PNAI consegue articular-se com estes planos todos?
O próximo ciclo vai reforçar essa articulação. Até porque, depois deste PNAI, vários planos foram feitos. É importante que um problema como este tenha tradução nas várias áreas em que organizamos a nossa vida em sociedade.

De que forma é que o PNAI pode contribuir para as questões de género?
A primeira coisa a fazer é saber de que ordem são as discriminações. Se são de ordem monetária, a possibilidade de pensar quais os mecanismo de compensação. Por exemplo está no PNAI, as famílias monoparentais têm uma majoração do abono de família. Claro que isto não é exclusivamente destinado para mulheres, porque há famílias monoparentais masculinas, mas por essa via, está a haver ali um reforço positivo. Hoje há um discurso muito marcado contra a existência de bairros sociais.

O que pensa disso?
Os bairros sociais começaram por ser uma tentativa de solução e acabaram por ser parte do problema. Sabemos hoje que não vale a pena investir em determinadas formas de alojamento social. Temos iniciativas interessantes que nos permitem ver qual poderia ser o caminho. Estou a falar, por exemplo, do projecto Bairros Críticos, que faz parte do PNAI.

Lembra-se do Programa Urban [abordagem integrada que envolveu uma sólida parceria local]? Lembro.

Dizia-se maravilhas do efeito no Bairro do Cerco [Porto]. Com a demolição do Bairro de São João de Deus, o Cerco tornou a pegar fogo. Também houve um projecto integrado para o Bairro do Aleixo, o tráfico fugiu, e voltou quando a atenção se virou para outro lado. Agora o poder local aprovou a demolição do Aleixo. Parece que andamos aqui às voltas.... A persistência, a duração das iniciativas tem de ser adequada à natureza dos problemas. Posso ter um projecto muito interessante um ano ou dois.

Ao fim desse tempo, foram criadas as condições para que as coisas se mantenham, tenham a sua dinâmica própria ou não?
Penso que muitas iniciativas não têm tido a persistência necessária. É fundamental haver persistência. É curioso falarmos de problemas sociais que são severos e termos intervenções de curtíssima duração e cirúrgicas. Mas já houve um trabalho muito importante e muito significativo, por exemplo, no departamento de habitação do Porto.

A que trabalho se refere?
A Câmara do Porto já teve iniciativas muito interessantes em bairros municipais. Estou-me a lembrar da urbanização de Santa Luzia. Houve um trabalho interessante na organização de condomínios, na gestão dos espaços comuns, trabalho nos jardins, ateliers de crianças. Tomou-se aquele espaço não só como um espaço de morar, mas como um espaço de viver. Julgo que essas coisas hoje estão mais retraídas.

A intervenção tem de ser global?
Às vezes não se articula o investimento na estrutura física com o investimento na infra-estrutura social e cultural. E não há hierarquia possível. Quando não são integrados, nenhum deles ganha. Se faço um investimento social e cultural sem ter uma infra-estrutura básica, posso rapidamente perder o encorajamento que ganhei por parte da população, etc. O mesmo, se faço um investimento na estrutura física e a deixo desprovido de serviços. Julgo que tem havido uma certa dessintonia entre estas duas dimensões. E que isso se salda nesse vai e vem. Tem-se a sensação que se olha para um bairro e ele está mais ou menos e olha-se outra vez e já está de outra maneira. É um corpo que mexe.

Por isso o programa Bairros Críticos suscita cepticismo....
Há um grande cepticismo em relação à intervenção social. Mas há que contrariar a ideia de que as coisas não correm bem então o melhor é não fazer nada. Julgo que os Bairros Críticos estão a fazer uma tentativa muito interessante.

Os estudos indicam “desgosto” pelo bairro...
De vez em quando pode acontecer o contrário, mas a preponderância é as pessoas gostarem da casa e não gostarem do bairro. E isto dá uma indicação de dinâmicas que fazem as pessoas retractivas a fazerem coisas em conjunto, a saírem do bairro, a quererem ser identificadas com o próprio bairro. Se este é o diagnóstico. Não se pode mexer só nas casas, tem de se mexer no ambiente, criar um ambiente de viver. Um bairro não é um somatório de alojamentos, é outra coisa.