8.10.08

O dilema

Luís Filipe Malheiro, in Jornal da Madeira

Recentemente, quando o país e o mundo se encontram a braços com uma crise global, que os especialistas recusam projectar temporalmente, mas empenham-se em suavizar os efeitos domésticos, o discurso presidencial na cerimónia dos 98 anos da proclamação da República, em Lisboa, conteve recados diversos que o próprio antigo Comissário Europeu, o socialista António Vitorino, admitiu que terá incomodado o governo do seu partido.

Parece-me cada vez mais evidente que o Presidente da República está mergulhado num dilema: por um lado, a necessidade de não se constituir nem como força de bloqueio nem como instrumento gerador de instabilidade política; por outro, ter o bom senso de manter-se distante de um governo apoiado por um partido, o PS, que esteve contra ela na corrida presidencial, já que se dividiu entre Mário Soares e Alegre. Acho que não temos nem devemos ser hipócritas: Cavaco Silva jamais será o Presidente de todos os portugueses, um “chavão” que aos poucos foi sendo usado e publicado, com mais ou menos convicção, mas que obviamente não pode ser levado a sério ou ultra-dimensionado.

Cavaco sabe que foi eleito por uma parte do eleitorado, logrou mais de metade dos votos dos que participaram na sua eleição, mas teve uma parte substancial de eleitores que, ou não votaram ou não o apoiaram, optando por outros candidatos. Dizer, por mero oportunismo circunstancial, que o Presidente da República será, por exemplo, o Presidente do eleitorado do Bloco de Esquerda ou do PCP é tão sério e verdadeiro como eu estar para aqui a garantir que o Andorinha será campeão europeu de futebol daqui a um ano, só porque é uma equipa de futebol, esquecendo tudo o que, a montante ou a jusante, impedem que tal desfecho seja sequer imaginável. Aliás, acho que esse tipo de argumentação não passa de pura retórica, sem substância, sem lógica ou razão de ser. Cavaco tem competências constitucionais próprias, tem de pugnar por manter o relacionamento institucional adequado com o executivo, mas não pode permitir que o manipulem, seja em que circunstâncias for, muito menos que o arrastem ao sabor de conjunturas, transformando-o numa mera “bandeira” que alguns usam, por mero oportunismo (e oportunidade) política, sem que com isso queiram afirmar-lhe, bem pelo contrário, que alguma vez farão parte da sua base de sustentação eleitoral.

Ora se por um lado o relacionamento institucional tem funcionado normalmente, por outro parece-me que se começam a notar alguns sinais evidentes de que Cavaco Silva pretender descolar-se, preferindo que cada protagonista desse diálogo siga o seu caminho, como se se tratassem de duas linhas férreas que correm paralelas — Governo (e PS) numa e Presidente da República noutra — mas que nunca se tocam, não se cruzam, pelo contrário, porventura se distanciam porque têm destinos (objectivos) diferentes.

Recentemente, quando o país e o mundo se encontram a braços com uma crise global, que os especialistas recusam projectar temporalmente, mas empenham-se em suavizar os efeitos domésticos, o discurso presidencial na cerimónia dos 98 anos da proclamação da República, em Lisboa, conteve recados diversos que o próprio antigo Comissário Europeu, o socialista António Vitorino, admitiu que terá incomodado o governo do seu partido. Mas afinal o que disse Cavaco Silva de tão transcendente? Inquestionavelmente introduziu algumas ideias e alguns avisos que admito possam levar o próprio governo socialista de Sócrates, mesmo que contrariado, a “colar-se” ao sentimento presidencial. E percebe-se facilmente porquê:

• (…) “Não escondo que vivemos tempos difíceis. Os Portugueses sabem-no, porque vivem essas dificuldades no seu dia-a-dia. Muitas famílias têm dificuldade em pagar os empréstimos que contraíram para comprar as suas casas. Há idosos para quem a reforma mal chega para as despesas essenciais. Há jovens que buscam ansiosamente o seu primeiro emprego. Há homens e mulheres que perderam os seus postos de trabalho. Nascem novas formas de pobreza e exclusão social e, em paralelo, emergem chocantes disparidades de rendimentos. O que é vivido pelos cidadãos não pode ser iludido pelos agentes políticos;

• Quando a realidade se impõe como uma evidência, não há forma de a contornar. Portugal tem registado fracos índices de crescimento económico. Afastámo-nos dos níveis de prosperidade e de bem-estar dos nossos parceiros europeus. Ainda não invertemos a insustentável tendência do endividamento externo. Persistem profundas disparidades entre as diferentes regiões. A situação internacional, por outro lado, não é favorável. Ao elevado preço do petróleo e dos produtos alimentares alia-se o aumento das taxas de juro. As economias dos países europeus, nossos principais parceiros comerciais, registam um claro abrandamento;

• O regime político português encontra-se perfeitamente estabilizado e sedimentado, as instituições fundamentais do Estado funcionam, o sistema de governo não difere dos que existem nas democracias europeias mais antigas do que a nossa. Vivemos um período de estabilidade política e existem condições de governabilidade. É certo que podem e devem ser introduzidas alterações pontuais para melhorar a qualidade da democracia e para aproximar o poder dos cidadãos;

• A nossa ambição de regressar ao caminho da convergência real com o desenvolvimento médio da União Europeia e reduzir o desemprego deve permanecer viva. É aqui que deve centrar-se o debate e a agenda política. Os novos empresários já se aperceberam de que o êxito dos seus projectos depende da sua capacidade para enfrentar a concorrência na economia global;

• A nossa ambição de melhoria do poder de compra de quem vive do seu trabalho e de redução dos níveis de pobreza tem, igualmente, de continuar viva. É aqui, também, que deve estar a prioridade da agenda política. A aposta na educação e na qualificação dos recursos humanos é consensual entre os agentes políticos, económicos e sociais;

• Vivemos tempos difíceis, sem dúvida. O futuro é incerto e, em muitos casos, preocupante. Porque falo sempre verdade aos Portugueses e porque tenho como princípio conhecer a realidade do País, escutar os meus concidadãos e ouvir as suas preocupações, sei bem que muitos atravessam momentos de incerteza perante o futuro. O Estado tem de garantir dois valores essenciais, a justiça e a segurança. Deve promover o acesso de todos aos cuidados de saúde, como deve oferecer um ensino de qualidade e uma rede de protecção social que proteja os cidadãos nos momentos difíceis da vida. O Estado nunca pode esquecer aqueles que têm muito pouco, os mais frágeis e desprotegidos, os que se encontram em situação de pobreza (…)”.

P.S.: Cada vez mais se coloca na mesa a interrogação — para a qual não existem respostas, ou melhor dizendo, não existe a convicção indiscutível que tranquilize as pessoas: afinal, para onde caminhamos, para onde vai Portugal operante esta crise que se instalou à escala global? Vítor Constâncio, governador do banco de Portugal, já garantiu que Portugal "não está imune à crise", embora “ninguém deve confiar em rumores sobre eventuais falências de bancos portugueses”. Se é um facto que em 2009 Portugal não crescerá a taxas diferentes das taxas de crescimento da área do Euro, o governador não esconde que terão que ser revistas em baixa as previsões de crescimento para o PIB português. Tudo isto um dia depois da Bolsa de Lisboa ter sofrido esta semana a maior queda numa só sessão (9,86%) desde a criação do índice PSI 20, em 1993, já que em poucas horas desapareceram do mercado de capitais mais de dez mil milhões de euros. E como se tudo isso não bastasse, é evidente que a vida de milhares de portugueses continua a ficar cada vez mais dramática e se alguma coisa não for feito para travar esta espiral, vamos ter dramas sociais que gerarão instabilidade e quem sabe que mais. Isto porque as taxas de juro interbancárias (Euribor) “continuam a estabelecer novos recordes, pressionadas pela crise registada nos mercados financeiros que tem levado à escalada do preço do dinheiro”. Ontem, por exemplo, a Euribor a seis meses, a mais utilizada nos créditos à habitação dos portugueses, subiu para 5,435%, o nível mais elevado de sempre. Se isto continua assim, para onde caminham os portugueses? E os europeus de uma maneira geral?