Rita Carvalho, in Diário de Notícias
Famílias carenciadas. Chegou a ser vista como a 'medida dos ciganos' ou o subsídio para quem não quer trabalhar. Mas o rendimento social de inserção (RSI), que substituiu o rendimento mínimo garantido, é cada vez mais uma prestação social que aposta na recuperação das famílias. Pelo menos, abre-lhes essa possibilidade. Embora 180 não cheguem para ninguém sobreviver, o RSI ainda é usado e abusado por muitos que preferem manter a subsidio-dependência. Na semana em que se falou da luta contra a pobreza, o DN foi conhecer quatro famílias que souberam aproveitar a oportunidade que vem com o cheque
Beneficiários do rendimento social de inserção aumentaram
Lurdes tinha os dias contados. Aos 36 anos, não comia, mal andava. Quando saía de casa, arrastava o débil corpo minado de feridas e deformado pela gravidez pelas ruas sombrias do Bairro dos Navegadores, em Porto Salvo. Desempregada, a habitar numa casa onde sobreviver pressupunha viver trancada no quarto, não fazia tratamentos para a sua doença crónica, arriscando uma morte certa e breve. Há dois anos, o corpo e a alma vincados pela miséria e o tempo vivido na rua não pareciam admitir-lhe muitos anos de vida. Nem sequer suportar a mudança que estava para vir.
Hoje, traz pela mão o filho José Carlos e, orgulhosa, um sorriso escancarado estampado no rosto. Passa pouco das 09.00 da manhã e o bairro Outurela/Portela, em Carnaxide, já despertou há muito para mais um dia. Lurdes deixa a criança já com dois anos na creche e entra na porta ao lado, na instituição onde toma diariamente a medicação. Com 38 anos, continua desempregada, com poucas habilitações, e a sobreviver com os poucos euros que o Estado lhe dá. Mas agora tem casa própria, está empenhada na sua saúde e é uma mãe extremosa. A sua vida passou a conjugar-se no futuro. E um futuro que tem de ser estável para que José Carlos cresça em harmonia.
Lurdes é apenas uma das 340 mil pessoas que actualmente recebem os 180 euros mensais (no máximo) do rendimento social de inserção (RSI), uma prestação social de que beneficiam cada vez mais portugueses. Tal como o seu marido, também desempregado, e metade deste valor o filho. Mas, ao contrário de muitas que ainda insistem em encará-lo como um rendimento e um direito adquirido, sem lugar a deveres, Lurdes percebeu que agarrada ao vale que chega todos os meses pelo correio vinha uma oportunidade de lutar por uma vida melhor. Este caso é também exemplo da forma discutível como se mede o sucesso desta prestação social. Se as estatísticas contabilizam como casos de sucesso as famílias que se autonomizam e passam a sustentar sem apoio do Estado, Lurdes é a prova de que o sucesso não é assim tão linear. É uma conquista permanente que se mede pelas pequenas vitórias do dia-a-dia.
"Estava tão em baixo que comecei a pensar que tinha um filho para criar. E que se não cuidasse primeiro de mim não ia conseguir cuidar dele", conta Lurdes, sentada num dos únicos bancos de plástico da sua sala, quase vazia, onde nos recebe, desfazendo-se em desculpas por não ter onde sentar todas as visitas. No processo de recuperação, cuidar da saúde desta frágil mulher foi a prioridade, explica Aida Gonçalves, técnica da equipa de RSI que acompanha, à semelhança desta família, mais 60 na zona. Como em tudo na vida, prossegue, não se pode começar a construir a casa pelo telhado, e antes de fazer cumprir as exigências da lei que apontam para a vida activa, é preciso trabalhar as competências básicas. Mais trabalhoso ainda, mas condição essencial para qualquer acção, é ganhar a confiança das pessoas, a maioria desconfiadas e magoadas. "Não é de um dia para o outro que dizemos a alguém que tem de tomar banho, deixar o álcool ou trabalhar", reconhece.
A recuperação de Lurdes começou por retomar os tratamentos, que lhe melhoraram a olhos vistos o estado de saúde, e evitar que o filho não herdasse os seus problemas. Depois foi aprendendo, aos poucos, a ser uma mãe e dona de casa dedicada. "Agora está um brinco", comenta, entre risos e afectos, Aida, referindo-se aos progressos no visual, aos quilos a mais, à pele que já não está ferida, e elogiando a arrumação e limpeza da casa. Lurdes corrobora a apreciação. "Já me alegrou o dia! É bom ter alguém para desabafar", diz, radiante com a visita e orgulhosa do caminho percorrido. Radiante ficará também o filho quando vir o Noddy que Aida trouxe para lhe oferecer.
Realojada no Verão neste bairro social de Carnaxide com o filho e o marido, Lurdes encanta- -se com a casa nova, mostrando todos os recantos do espaço, e assimilando as dicas que Aida, mais do que a técnica, a amiga, lhe vai transmitindo. "No supermercado compre produtos de marca branca. Assim, sobra-lhe mais dinheiro", explica, debruçando-se sobre o armário da sala que armazena cereais e cremes de bebé. "Compre um tapete de borracha para a banheira e nunca, mas nunca, deixe o bebé sozinho no banho", sublinha a ajudante de acção directa que acompanha de perto a evolução desta família. O parapeito alto da varanda, para onde trepa com facilidade o traquina e membro mais novo da família, é outra preocupação de Lurdes e para a qual Aida também já tem solução: uma rede na janela.
Lurdes gostava de ter um emprego, para "andar entretida", e pagar com os seus rendimentos as despesas familiares. Mas Aida já lhe explicou que tudo tem o seu timing e que, antes de partir em busca de trabalho, ainda há muito a fazer, como trabalhar a imagem. Se já foi possível convencê-la a largar o boné do Piu Piu que teimava em enfiar na cabeça, ainda é necessário arranjar os dentes, para que as portas da via laboral não se comecem a fechar umas atrás das outras. "O visual podia estar melhor", comenta, ainda assim, Aida, indicando-lhe o aspecto da camisola e o cabelo que tem de ser cortado, recebendo em troca uns sorrisos envergonhados.
O programa de inserção desta família, projecto obrigatório segundo a lei mas ao qual ainda escapam 40% dos beneficiários de RSI, ainda não está concluído. Até alcançar autonomia, esta família tem ainda um problema doméstico para resolver e uma vida profissional para conhecer. E uma saúde constante para cuidar. Lurdes sabe que se deixar decair o seu estado de saúde, e com isso diminuir a atenção ao filho, o braço da lei tem autoridade para lhe entrar em casa e retirar o seu "príncipe". É para que isso nunca aconteça que luta todos os dias.
Uma recuperação complexa
À casa de Ivone, do marido, dos quatro filhos e dos três netos, o apoio do Estado já chega há muitos anos. Antes em forma de rendimento mínimo garantido, hoje rendimento social de inserção, e acompanhado por novas obrigações. Sónia Veríssimo, psicóloga da equipa que acompanha esta família do Bairro dos Navegadores, em Porto Salvo, recorda que não foi fácil fazer ver estas alterações. E lembra o dia em que foi a casa de Ivone para negociar o programa de inserção e só depois de uma ameaça de cessação da prestação é que a titular do RSI levantou os olhos do boletim do Euromilhões que estava a preencher e a escutou com atenção. Agora as coisas são diferentes e Ivone vê com bons olhos a acção e a ajuda das técnicas. Aida e Sónia vêm hoje buscar alguns quadros que Ivone pinta para os expor na barraca do Centro Social e Paroquial de Porto Salvo, instituição a que pertencem, a propósito da festa da Senhora da Paz, que o bairro acolhe no fim-de-semana.
Um problema de obesidade mórbida impede Ivone de sair de casa e trabalhar, mas esta senhora de 49 anos encontrou na pintura um passatempo que a distrai e até um potencial negócio que, a correr bem, ajudaria a suprir as carências económicas. "Não tinha ninguém para conversar, então comecei a pintar", conta, apontando para os mais de cem quadros expostos em cima da mobília da sala. As cores vivas e fortes das telas acusam as raízes desta são-tomense que um problema de saúde fez, aos 15 anos, abandonar a terra natal com uma mão à frente e outra atrás.
Depois de passar por vários bairros e por uma barraca por si erguida na Pedreira dos Húngaros, onde foi "tendo um filho de cada vez", Ivone recebeu uma casa no bairro dos Navegadores. Lamenta que antes a barraca pudesse ficar aberta, porque o ambiente entre vizinhos era bom, e agora as pessoas sejam "venenosas", como diz, ao ponto de ter ganho vergonha de sair de casa. "Se precisar de um comprimido, ninguém me dá", afirma, enquanto Andreia, a filha de 21 anos que tem o neto Frederico de dois ao colo, fixa os olhos na televisão.
São 11.00 e cinco dos nove elementos da família saíram. Os mais pequenos para a escola, a filha Susana de 25 anos para o trabalho como ajudante de cozinheira, o companheiro de Ivone para dar uma volta. Andreia está em casa, pois mantém apenas um dos dois empregos nas limpezas que lhe tinham sido encontrados pelas técnicas sociais. Não pôs Frederico na creche, opção que a equipa de RSI não questiona desde que não sirva de argumento para não trabalhar.
Marlene, a filha mais nova, de 17 anos, não está a frequentar a escola, e por isso preocupa a equipa de RSI, que, juntamente com a família, traçou a frequência escolar como objectivo essencial para a recuperação. A explicação de que pretende integrar um Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF), mas que a escola não possui actualmente turmas disponíveis, será acompanhada pelas técnicas que têm o dever de ir cruzando a informação fornecida pela família, a escola, as entidades patronais e de saúde. Integrar os membros activos da família na escola ou no mercado de trabalho é a única forma de romper o ciclo de pobreza em que vivem embrenhados muitos agregados como este, explicam os técnicos que lidam diariamente com estes processos.
Ivone já trabalhou, mas o avanço da sua doença torna o regresso à vida activa cada vez mais inviável. Por isso, cumprir o programa de inserção traçado passa por retomar os cuidados de saúde, ganhar ânimo para não se deixar cair na cama e lutar pela recuperação.
É isso que vêm checar as enfermeiras que acabaram de tocar à campainha. São as técnicas do centro de saúde que regularmente vêm ao bairro numa carrinha para prestar cuidados básicos. "Conte-me coisas", atira Maria José, que já há algum tempo acompanha Ivone e a incentiva a retomar as consultas médicas. "Já não está na caminha? Que bom! Até acho que está um bocadinho mais magra", comenta, recordando o que ficara combinado. "Levantar-se, abrir as janelas e sair para a sala para se mexer", explica. A "Dona Ivone andava-se a esquecer de cuidar dela", acrescenta, "mas agora que voltou a preocupar-se tem de tratar um assunto de cada vez". Emagrecer, recuperar a mobilidade, ser vista regularmente pelo médico e depois ser operada.
Apesar da preocupação, Ivone sabe que a operação não será para já. E até lá terá de continuar a passar os dias em casa, sentada em frente à televisão. Ou a pintar. E para que a sua arte extravase as paredes da sua casa já tem até uma ideia: criar um blogue para expor os quadros e, quem sabe, comercializá-los. Até já tem nome: sotroca.blogspot.com.
Uma futura família RSI
Ao cair da noite, quando abandona o call center onde trabalha, Maria Gabriela já vem, habitualmente, acompanhada pelos dois filhos adolescentes. Sofia, 13 anos, e Filipe, 17, reúnem-se no trabalho da mãe para viajarem até casa num dos últimos autocarros que percorrem a estrada deserta até ao Bairro dos Navegadores. A explicação é simples: o bairro onde vivem já lhes pregou sustos suficientes e nada como jogar pelo seguro e evitar chegar sozinho. Hoje é um dia atípico, e Filipe ficou a namorar até mais tarde, enquanto a mãe e a irmã aproveitam a boleia até Oeiras para fazer compras para o jantar.
Já em casa, Gabriela apressa-se a arrumar a cozinha e a prepará-la para o jantar, tropeçando no Bunny, no Bolinhas e no Minorca, os três gatos de estimação de que todos matam saudades ao final do dia. Sofia providencia a mochila para o dia seguinte e arruma a roupa dobrada em cima da cama, encostada à parede forrada com posters dos Tokio Hotel, a sua banda de eleição, e algumas estrelas dos Morangos com Açúcar. No quarto ao lado, o ambiente é mais pesado, e as caras bonitas dos actores de televisão são substituídas por bandas de heavy metal, que Filipe adora.
Esta família monoparental não está ainda a receber o rendimento social de inserção. Mas já preencheu o formulário para vir a beneficiar de um complemento que ajude a suportar as despesas diárias, difíceis de suprir apenas com um salário e pontuais apoios familiares. Casos como este são cada vez mais comuns e difíceis de autonomizar, explicam os técnicos, pois a recuperação não passa pela integração no mercado de trabalho ou na escola, nem pela formação profissional. A mãe já está a trabalhar, tem boas habilitações, mas os rendimentos auferidos não são suficientes. Se nas famílias mais carenciadas a luta se faz pela mudança de mentalidades e pela inversão do ciclo de pobreza, aqui passa por melhores rendimentos.
O caso é ainda mais difícil de gerir porque a família está totalmente desenquadrada do contexto em que se insere. "Nunca na vida pensei que poderia vir a morar num bairro social. A verdade é que a pessoa num dia pode ter tudo e no outro já não ter nada", confessa Gabriela, 53 anos, e grande parte da vida vivida no Estoril, Paço de Arcos e num ambiente abastado. O filho mais velho, que frequentou um colégio particular, está agora a tirar um curso profissional de assistente comercial. Mas a prioridade, mais do que arranjar um emprego ou estudar nos Estados Unidos, como anseia, passa por ir viver para outro lado, onde um ambiente calmo ajude a serenar as desilusões da vida.
Relações pessoais complicadas com separações dolorosas ajudam a explicar o percurso desta família. Não querendo entrar em grandes pormenores, Gabriela confessa: "Basta um divórcio, uma zanga, que cai tudo por arrasto. E o que cai num instante leva muito tempo a reconstruir", afirma, sublinhando que qualquer um pode cair na mesma situação. O apoio do Estado que deverá chegar com o RSI é encarado como um suporte temporário. "Não vou viver à custa deste rendimento. E quanto menos tempo receber, melhor, é sinal que já recompus a vida. Para mim, trabalhar não é um bicho-de-sete-cabeças", afirma, consciente, contudo, de que a sua idade será um factor desfavorável na busca de um emprego mais "ajustado" às suas habilitações. Uma máxima que não se aplica a todos os beneficiários de RSI: muitos preferem ficar em casa à espera de melhores dias.