Natália Faria, in Jornal Público
Menos de um por cento dos pais dividem a licença pós-parto com elas. Muitos nem a licença de cinco dias tiram. A tradição ainda é o que era
Há vários anos que a lei portuguesa permite que os pais partilhem a licença pós-parto com as mães. Apesar disso, em 2007, apenas 0,7 por cento dos pais o fizeram, segundo a Segurança Social. Pior: 40,2 por cento dos pais não requereram sequer a licença de cinco dias úteis a que têm direito após o nascimento dos filhos.
Estes cinco dias em casa até são obrigatórios, mas, como diz Odete Filipe, do Departamento para a Igualdade da CGTP, "como ninguém anda a apontar uma arma à cabeça dos pais, muitos não a gozam e os patrões até agradecem". Já a licença parental (15 dias úteis remunerados a 100 por cento), a gozar a seguir aos cinco dias ou após a licença da mãe, é opcional, mas também aqui as diferenças são óbvias: em Setembro, apenas 3845 pais trabalhadores estavam a gozá-la, contra as 27.303 mães que se encontravam em licença de maternidade.
Somam-se estes números e o que se obtém é o retrato de um país onde prevalece a ideia de que cuidar dos bebés é competência exclusiva da mulher. "É um problema de mentalidades", responde Odete Filipe, "mas esta falta de partilha acontece também porque, em regra, o homem ganha mais, logo faz mais sentido que seja a mulher a ficar em casa".
Campanhas pedem-se
João Paulo Pires, bancário, de 42 anos, não partilhou a licença pós-parto com a mulher, "até porque naqueles primeiros meses é importante para a mãe ficar em casa". Mas as restantes, sim. "Optei por gozar a licença parental a seguir à minha mulher e, durante esses 15 dias, mudei fraldas, dei biberão e levei o bebé ao trabalho da minha mulher para ela poder amamentar", descreve, apontando a falta de informação como explicação para o facto de tantos homens declinarem a experiência. "Seria bom dispor dessa informação nas maternidades e nas conservatórias de registo civil. Tive que andar a perguntar para saber."
Luís Gameiro, da Associação Pais para Sempre, também reclama campanhas sobre os direitos dos pais após o nascimento dos filhos. "Há homens da minha idade que, quando chegam a casa, calçam pantufas e vêem televisão, mas isso é da meia-idade para cima. Os mais novos não resistem a participar nos cuidados aos bebés. O que me parece é que a maioria desconhece o direito a essas licenças."
Odete Filipe concorda e acrescenta que "os reclames que mostram bebés a fugir quando o pai lhes vai limpar o rabinho e mulheres contentíssimas com lixívias para roupas brancas" não ajudam. A investigadora Glória Rebelo também acha que campanhas de promoção da partilha das responsabilidades familiares podiam ajudar a romper hábitos adquiridos. Porque, para esta especialista em Direito Laboral, o factor preponderante na fraca participação paterna nos cuidados aos bebés é mesmo o cultural.
"A lei, por si só, não é suficiente para mudar comportamentos", nota, para considerar que "a sensibilização para as questões da igualdade, designadamente na assunção de responsabilidades familiares, deve começar nos primeiros momentos da socialização, na família e na escola".
Para a socióloga Anália Torres, as razões para a fraca participação dos pais serão, em parte, herança do Estado Novo, cuja ideal de família era a soma do homem provedor do sustento e da mulher zeladora do lar. "Ainda que os homens saibam que já não conseguem sustentar sozinhos a família, no íntimo sentem que o homem adequado não é o que vai a correr tirar licença quando nasce um filho, mas o que fica a trabalhar mais horas".
Por outro lado, nas empresas "há uma assimetria total" na forma como os pais e as mães são tratados. "Olha-se para uma trabalhadora que acabou de ser mãe com a expectativa errada de que ela vai faltar mais vezes. No caso do pai, até se fica muito contente porque se considera que a partir daí é que ele vai trabalhar mais. Este sistema de expectativas cruzadas acaba por produzir efeitos nas pessoas", insiste a socióloga, que lembra que os pais também saem a perder no actual cenário: "Pode ser mutilante para um homem ver-se empurrado para fora desta esfera mais afectiva", conclui.
Novo código "promove" participação dos pais
Quando o novo Código do Trabalho entrar em vigor, já a partir de Janeiro, a licença a gozar obrigatoriamente pelo pai após o nascimento do filho aumenta de cinco para dez dias úteis. No mês seguinte ao nascimento, os pais terão direito a mais dez dias úteis opcionais de licença, seguidos ou interpolados (agora são 15 dias, igualmente remunerados a 100 por cento). O novo código confere ainda ao pai o direito a três dispensas ao trabalho para acompanhar a mãe a consultas pré-natais. No pós-parto, se não houver partilha da licença, a mãe mantém o direito a quatro meses remunerados a 100 por cento ou a cinco meses remunerados a 80 por cento. Mas, se pelo menos um dos meses for gozado de forma exclusiva por cada um dos progenitores - ou seja, se o pai ficar em casa pelo menos um dos meses -, a licença alarga-se para cinco meses remunerados a 100 por cento ou seis meses a 83 por cento. No futuro como agora, apenas seis semanas, consideradas necessárias à recuperação física, permanecem de gozo obrigatório pela mãe. Outra novidade é que, a seguir à licença inicial, cada um dos cônjuges pode ter mais três meses de licença, apoiados a 25 por cento da remuneração bruta. Quem opte por trabalhar a tempo parcial para acompanhar filhos menores verá a sua remuneração registada pelo dobro, para efeitos de prestações da Segurança Social. Ao mesmo tempo, os avós terão direito de faltar ao trabalho para assistência a neto menor, em substituição do pai ou mãe, "quando estes não faltem pelo mesmo motivo ou estejam impossibilitados de prestar assistência". N.F.
'A maior parte dos patrões nunca mudou uma fralda na vida'
Aceita falar sobre a experiência de ter gozado a licença de parto no lugar da mulher durante quatro meses, mas prefere não dar o nome. "Estamos num país de machistas", desculpa-se J., "e, mesmo no emprego, senti-me olhado de lado. Aliás, quando coloquei a questão, a primeira resposta que me deram foi que não era possível. Eu, como não tinha outra opção, fiz valer os meus direitos, até me ofereci para trabalhar a partir de casa, e eles lá aceitaram".
O facto de, mesmo depois de retomado o trabalho, preferir manter o anonimato é um pormenor que diz tudo sobre a estranheza com que a generalidade das pessoas olha para um homem que decide suspender o trabalho para passar os dias a mudar fraldas e dar biberões a um filho recém-nascido. "A minha mulher estava a 'recibos verdes' e, se tivesse que cumprir a licença de parto toda, seria despedida. Já era o nosso segundo filho e decidimos que ela ficaria em casa o primeiro mês e eu os restantes quatro", explica, à laia de justificação.
Foram os dias mais felizes na vida deste criativo numa empresa de publicidade. Mas também os mais difíceis. "O nosso outro filho tinha três anos na altura e regrediu um bocadinho com o nascimento do bebé [uma menina]. Aliás, voltou a fazer xixi na cama. Andava sempre de roda de um ou de outro, sem tempo para mais nada. Nos dias piores, acabava de pôr a fralda ao bebé e ele sujava-a logo a seguir, depois o meu outro filho cobrava-me atenção e lá tinha que ir pôr desenhos animados para ele ver; entretanto era altura de pôr o bebé a dormir e ele nunca adormecia facilmente. Havia dias em que só desejava que a minha mulher chegasse a casa depressa para eu poder ir apanhar um bocado de ar."
Não que a tarefa dela estivesse facilitada. "Ela amamentava o bebé antes de sair de casa. À hora de almoço vinha a casa dar a mama outra vez e, ao final do dia, regressava a correr para casa, para amamentar outra vez." À conta do leite acumulado nas horas de trabalho, contraiu várias infecções no peito. Mas o pior nem foi isso. O pior foi a culpa que J. sempre lhe pressentiu. "Era culpa ou outra coisa parecida. Como, no primeiro filho, ela tinha ficado em casa a licença toda, sentia que estava a falhar desta vez. Ela própria cobrava isso de si. O que nos ajudou até foi um livro que começava com uma coisa do género 'Uma mulher acha sempre que não tem amor suficiente para dar ao segundo filho'".
Com 34 anos de idade, J. garante que nunca foi homem de se pôr diante da televisão à espera que o jantar aparecesse feito. "Assisti ao parto e fui eu que cortei o cordão umbilical dos meus dois filhos e acho que isso já diz alguma coisa sobre a minha capacidade de envolvimento", declara, espantado de ver amigos da sua idade a olhar de soslaio quem, como ele, se dispôs a dividir a licença de parto.
"Não sinto que fosse por maldade: era uma questão de preconceito, mesmo. Aquela coisa de olharem para mim e pensarem qualquer coisa como 'Ah, este gajo, deve julgar-se melhor que os outros'". Se é assim na sua faixa etária, muito mais na classe dos empresários, conclui J. "A maior parte dos patrões que conheço nunca mudou uma fralda na vida." Natália Faria