17.10.08

À espera de uma casa que lhes dê apenas uma vida

Maria Cláudia Monteiro, in Jornal de Notícias

Reportagem Porto: Maria de Lurdes e as três filhas, de seis, 12 e 16 anos, vivem entre três cubículos em mau estado. Os insistentes pedidos de ajuda não obtiveram qualquer resposta, mas a família não abdica da crença de que é possível mudar

Maria de Lurdes abre o sorriso a cada pausa no discurso. Contrasta com a miséria que a envolve e que descreve com sofreguidão. Diz que é só por acreditar que é possível viver melhor. Pior será impossível.

Desistiu de fazer parecer acolhedor o tecto que só por eufemismo chama de casa. As mesmas paredes sujas e degradadas que lhe empurraram as filhas, de seis, 12 e 16 anos, para dormir num quarto em casa de uma vizinha, a troco de 50 euros. Dentro do que lhe é possível, tenta poupar as três filhas da falta de água, do calor infernal e do frio que lhes agrava a bronquite asmática, da água da chuva que escorre impiedosa pelas paredes do cubículo que serve de cozinha e de sala, dos bichos que saem pelo tubos da antiga casa de banho que agora serve de quarto. Ficam protegidas da miséria física, mas longe da vigilância segura do ouvido materno. "Fico aqui a pensar se uma delas tosse ou se precisa de alguma coisa..."

A degradação foi empurrando Maria de Lurdes para outros pedaços de tecto que vão ocupando, dispersos, o espaço daquela ilha solitária. Nada parece o que deve ser e é assim há cinco anos. Desistiu de pintar as paredes, de tentar tapar a miséria com os móveis, de improvisar o impensável para apelar, pedir e lutar por uma casa. A todos os que lhe podem valer. Mas o desespero permanece... Sem resposta.

"Uma casa tirava-me 10 anos da minha cara", garante. E são só 38 anos de luta e derrota, com final à vista. Os cerca de 460 euros que recebe de Rendimento Social de Inserção foram o primeiro sinal que Maria de Lurdes precisou para acreditar que é possível inverter o ciclo. "Fiz uma festa. Pude comprar umas coisinhas melhores para as minhas filhas", recorda. "Comecei a dar-lhes um bocadinho de vida".

Assim, as "coisinhas boas" deixaram de ser um luxo de fim-de-semana e as bolachas e os iogurtes passaram a ter lugar na mesa. Será este o princípio do fim da pobreza, garante Maria de Lurdes. Voltou a estudar, integrada no programa de RSI, e espera finalmente conseguir, primeiro, o nono ano, mais tarde, o 12.º. "Depois da escolaridade, vou logo tentar arranjar trabalho. Não quero viver do Rendimento".

O regresso aos estudos é a concretização de um sonho de menina, o mesmo que a levou a trabalhar para conseguir ir à escola. Trabalhou em cafés, fez limpezas, mas acabou por ter de abdicar dos livros. "Não dava para as duas coisas, adormecia nas aulas". Chegou ao 7.º ano.

O casamento aos 21 anos deu-lhe as filhas, a alegria que lhe suporta o sorriso fácil, mas sujeitou-a a 11 anos de violência doméstica. Ao libertar-se do marido, caiu a pobreza, que conseguiu iludir enquanto trabalhou a tempo inteiro numa empresa de limpezas. Ganhava o ordenado mínimo, até que a contenção de custos lhe reduziu o horário a duas horas diárias.

Soraia, de 12 anos, e Ana Rita, de seis, ouvem o relato da mãe. Sem drama, é a vida delas. Soraia tenta resistir à fotografia. "Precisamos de mostrar as condições em que vivemos", explica-lhe Maria de Lurdes. A simplicidade da resposta é chocantemente compreensível: "Mas eu não quero que o Mundo veja".