Ana Cristina Pereira, in Jornal Público
A equipa de rua GIRUGaia percorre quilómetros todos os dias para chegar a quem dela depende. O tráfico de estupefacientes em Vila Nova de Gaia segue disperso, discreto
É em Arcozelo que está a ser impulsionado um movimento de defesa dos direitos dos toxicodependentes. Elementos da APDES participam em reuniões do que virá a ser a associação CASO (Consumidores Associados Sobrevivem Organizados).
a Quebrantões, Escarpa da Serra do Pilar. De uma ruína que outrora foi uma casa apalaçada saem cinco homens. Há mais lá dentro, entretidos a consumir a heroína ou a cocaína que compraram a algum dos pequenos traficantes que por aqui se movem - quase sempre traficantes-consumidores.
A GIRUGaia, equipa de rua da Agência Piaget para o Desenvolvimento, traz mais do que seringas e papel de estanho, toalhetes desinfectantes, ampolas de água bidestilada, filtros, ácido cítrico, caricas, preservativos. Traz chá, bolos e salgados, cuidados básicos de saúde, apoio psicossocial.
- Quer preservativos?
- Não uso disso, muito obrigada.
- Não usa?
- Um homem metido nisto...
É raro algum levar preservativos. Quase só as trabalhadoras do sexo os levam. E aquele homem até leva poucas seringas.
- Uso duas ou três vezes a mesma.
- Não devia fazer isso. O bico fica rombudo e estraga mais as veias.
Isto não é o Bairro do Aleixo, espécie de mercado abastecedor do Grande Porto. Aqui não se trocam 400 seringas em duas horas. Os homens sucedem-se a um ritmo lento, sem se atropelarem. Tomam um chá, comem um bolo ou um salgado, conversam um pouco sobre a vida, fazem a troca.
Um jovem muito louro pede mais um pouco de chá. A psicóloga Alina Santos e a assistente social Susana Peixoto assentem e ele corre para dentro da ruína em busca de uma garrafa. Está sem-abrigo. Dorme num edifício devoluto situado um pouco acima, com outros quatro ou cinco.
- A minha consulta ainda não foi marcada? - pergunta um homem com seis seringas para trocar, que faltou à última consulta no Centro de Respostas Integradas do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) por lhe ter aparecido um biscate, uma oportunidade de ganhar algum.
- Já pedimos, mas ainda não nos deram data - responde Alina Santos, consultando uma capa.
Ao lado, Susana Peixoto aconselha um homem a, pelo menos, mudar o sítio onde se pica, para não secar as veias.
- Faz garrote? O garrote ajuda. Até com a camisola. Poupa as veias.
Não são sempre os mesmos neste que é o primeiro ponto do giro das 16h30. Ao longo do dia, passam pela casa em ruínas homens que só ali estão o tempo suficiente para consumir. A GIRUGaia já aqui contactou à volta de 70 pessoas. Sempre que o cerco aperta no Bairro do Aleixo ou na Sé do Porto, aumenta o afluxo à Serra do Pilar. Da Sé para ali é um tiro. O dia foi atípico, talvez pela presença do PÚBLICO. Hoje atenderam nove. Na véspera, atenderam 20.
Carvalhos a sair do mapa
Carvalhos, Pedroso. A carrinha estaciona na zona da feira, debaixo de um plátano. Já aqui auxiliaram "muitos consumidores", mas nos últimos dias nem vivalma. Que se passa? O consumidor que ali traficava está a fazer um tratamento de desabituação de drogas.
Às vezes, é assim. Às vezes, basta um traficante mudar de sítio para toda uma geografia se alterar. Na Serra do Pilar, a equipa já parou em quatro sítios. Há várias entradas: o traficante muda de entrada, os consumidores mudam de entrada; a equipa reajusta o trajecto.
Talvez esta seja a última vez que a carrinha aqui vem, admitem as duas técnicas. Dantes também ia ao Canidelo e já não vai. Pelo menos por três vezes, os toxicodependentes converteram uma casa abandonada num local de consumo e a Junta do Canidelo mandou demoli-la sem com isso acabar com o movimento. Quando o GIRUGaia conseguiu integrar o traficante-consumidor num programa de metadona, ele deixou de vender e os outros dispersaram: uns passaram a comprar na freguesia da Madalena, outros no Bairro do Aleixo. Deixou de fazer sentido ir lá.
Avintes duas vezes por dia
Senhor do Palheirinho, Avintes. Todas as tardes, já depois da escola fechar as portas, a carrinha pára no largo. Os toxicodependentes consomem lá atrás, numa casa abandonada. Este é um local de passagem. O trabalho exige muita mediação - a equipa conversou com os moradores antes de assentar arraiais e eles não quiseram ver a carrinha mais perto do ponto.
Passam 11 homens por aqui sem que B. abandone o lugar. Discursa. Consome "desde 1978 ou 79". O que se vende agora "já não é droga, é medicação". Medicação por medicação, prefere uma droga de substituição. E, por isso, visita a carrinha duas vezes por dia: agora à tarde, que assim sempre lancha, e de manhã, para fazer a toma de metadona (ver texto ao lado).
Os bolos e os salgados sobram numa pastelaria de Arcozelo que os oferece à GIRUGaia com um dia de atraso. E aqueles doces e salgados são a única coisa que alguns metem no estômago. Não é o caso de B., que trabalha (embora agora esteja de baixa).
Não abundam respostas alimentares no mais populoso conselho da área metropolitana. Apenas duas entidades oferecem refeições: a Associação Nacional de Combate à Pobreza (Devesas, Santa Marinha) e Associação Nacional de Apoio aos Pobres e Necessitados (Vilar do Paraíso).
Orfeão, Madalena. Já são 20h30 quando a carrinha encosta ao pé do ecoponto para atender a última dezena da ronda da tarde. Um rapaz com o rosto desfigurado acusa um papo. Susana Peixoto telefona para a linha Saúde 24 (808 24 24 24).
- É mesmo um papinho.
A conversa alonga-se até o operador dizer que o rapaz tem de ir ao centro de saúde e o rapaz se aborrecer. Não está para ficar horas à espera. Susana Peixoto sossega-o. Telefonarão amanhã quando vierem com o programa de terapêutica combinada e a Saúde 24 mandará um fax para o centro de saúde a pedir que o recebam com urgência.
Pode contar com a GIRUGaia. Pode sempre contar com a GIRUGaia.
A equipa de rua fornece utensílios para higienizar o consumo de droga, alimentos e conselhos para a integração