10.11.08

"Há uma palavra importante: partilha"

Ana Cristina Pereira e Carla Marques (Rádio Nova), in Jornal Público

O presidente da Filos está a lançar uma cooperativa na zona oriental do Porto para promover solidariedade entre vizinhos


O que nunca faltou a José Maia, vigário da paróquia da Areosa, foram ideias. O ano passado, o presidente da Fundação Filos apresentou uma plataforma de instituições de solidariedade social; este ano, lançou o Movimento Comunidade e Vizinhança. Gosta de ter ideias. Vê-as como um sintoma de inquietação, de luta. "Há coisas que correm bem, outras mal."

A região norte, outrora um motor da economia nacional, é hoje uma das regiões mais pobres da Europa. A taxa de desemprego é de 8,2 por cento, quando a média nacional é de 7,3. O distrito do Porto lidera, de forma destacada, o número de beneficiários de rendimento social de inserção (RSI): 114.722 num total de 346.294. O que pode a sociedade civil fazer para ajudar a combater, de forma mais eficaz, a pobreza?

Há tempos, Carlos Nunes, do POEFDS [Programa Operacional Emprego, Formação e Desenvolvimento Social], dizia: "Padre Maia, já imaginou os milhões de euros que são descarregados?" Tenho essa consciência. Na área do Porto, milhões de euros são descarregados em abonos de família, rendimento social de inserção, subsídio de desemprego. E, apesar disso, continuamos a ter pobreza. Para mim a expressão mais significativa e concreta da pobreza é o desemprego Há muita gente que não tem emprego. Diremos: "Têm trabalho." Podemos distinguir. Mas há muita gente que gostaria de trabalhar e não consegue trabalhar. Na zona de Penafiel, por exemplo, houve uma grande margem de gente que foi para Espanha trabalhar. E agora Espanha, com a crise, recambiou-os.

Abrem-se outros mercados, como Angola.

Assim como há deslocalização de oferta, há deslocalização de procura de oportunidades. Ainda há hoje portugueses de raça, heróis do mar, que se fazem ao mundo e vão buscar oportunidades. E por aí passará alguma amortização de algumas dificuldades. O RSI é um autêntico termómetro.

Há controlo no RSI?

Nós assinámos um contrato com a Segurança Social [para acompanhar 360 famílias de RSI]. Dizem-me que a nossa equipa põe muitas dificuldades. Já houve até uma tentativa de incendiar a fundação. Houve alguém que meteu um papel a arder. Por acaso aquilo é pedra, mas eram duas da manhã quando me acordaram para ver o que se passava. Tenho equipas em que acredito. Elas também me dizem que podia haver alguma reforma. As pessoas dizem: "Como é que eu vou dar o certo pelo incerto? Neste momento recebo isto; se for levar o meu filho ao infantário, vou gastar mais do que recebo." Em França isto tem um tratamento diferente: se a pessoa tiver um contrato de trabalho, não perde logo a prestação social.

Isso, em França, ainda é um projecto-piloto.

Ainda é um projecto-piloto, mas em Portugal alguma coisa podia ser mais motivadora. Que se encontre aqui uma maneira de fazer um bypass.

Tem falado em criar o Movimento Comunidade e Vizinhança. Em que fase é que isso está?
Começa a andar. Trabalho na zona oriental do Porto há 28 anos. Tenho todos os dados para saber que há ali muita gente com muitas dificuldades. Mas este projecto não é só para quem é pobre. Este projecto pretende ser uma proposta de ordenamento do território. A Constituição, no artigo 263.º, prevê a possibilidade de associações de moradores. A seguir a Abril houve muitos moradores que se associaram e fizeram maravilhas. Hoje isso não tem expressão. Entendo que devemos ir por aí nesta fase que o país atravessa. Vamos ensaiar isto no Porto oriental. Isto é uma maneira concreta de procurar empowerment. Como se pode dar poder a essas pessoas? Entendemos que há uma palavra importante: partilha. Há pessoas que podem repartir bens, serviços.

Como é que isto vai funcionar?

Uma equipa do Instituto Superior Politécnico Gaya está connosco para dar suporte à filosofia do movimento. Para já, está constituída uma cooperativa. Todos os que quiserem participar fazem-se cooperantes. Não há nenhum. Vamos convidar pessoas que possam dar um contributo. Por exemplo, por que não negociar com restaurantes para que famílias pobres possam lá tomar refeição? Num restaurante já me disseram: 'Ó, padre Maia, mande-me aqui [alguém] lá para as 14h30. Isto está manso, em vez de ir para o cão vai para ele.' A frase é dura mas é verdadeira. Imagine que são três pessoas? Isto tem a proximidade e tem um controlo. Cada pessoa sabe que está a dar um contributo na sua localidade para que alguém seja feliz.

Às vezes, tem-se a sensação de que se lançam muitas ideias que resultam em nada. Há um ano falávamos de Compromisso com a Inclusão (uma plataforma de instituições da Área Metropolitana)...

As ideias significam preocupações e tentativas de. O ano passado, no Dia da Pobreza, houve a ideia de ver até que ponto havia vontade de as pessoas que trabalham nas mesmas áreas se juntarem. E se organizarem. Fizeram-se várias reuniões. E achou-se que seria conveniente lançar uma candidatura ao Quadro de Referência Estratégico Nacional [QREN] para conseguir apoios para projectos. As reuniões foram feitas mas... Há o problema da falta de cultura de partilha dos seus projectos.

Está cada um no seu "quintalinho"?

É um pouco a teoria das gavetas fechadas. Há uma zona no país onde cada um tem a sua gaveta na mesa e fecha-a quando vem alguém de fora. A plataforma para a inclusão era uma ideia que ia no bom sentido. Fizeram-se tentativas, reuniram-se pessoas. Não digo que a ideia tenha morrido. Há candidaturas ao QREN que resultaram daí. Mas não teve a sequência que julgávamos. Este ano, no Dia da Pobreza, avançámos com o Movimento Comunidades de Vizinhança. Vai ser possível? Não faço ideia. Até 26 de Maio, Dia Internacional do Vizinho, vamos fazer uma espécie de peditório de oportunidades.

Porto sem rede social

Continuam as ONG de costas voltadas para a câmara ou a câmara de costas voltadas para as ONG?

Não sei a experiência que há no Porto. Na Filos, os técnicos articulam-se com técnicos. Ao nível de projectos em que haja necessidade de articulação, articulam. Mas a Câmara Municipal do Porto adoptou uma filosofia muito própria. Todas as câmaras têm um pelouro social. E o pelouro social intervém ao nível da rede social. No Porto, de facto, não há rede social. É o único concelho do país.
Estão a criá-la agora.

Já estão a criar há muito tempo. O Porto, enquanto cidade, não devia ter uma, devia ter duas ou três - segundo a legislação. Aqui a interpretação que deram ao pelouro da acção social é diferente. O Porto elegeu a Fundação Social. Há aqui uma maneira de trabalhar que não facilita o desenvolvimento de alguns projectos. A rede social, naquilo que ela representa de articulação com a autarquia e outras instituições do Estado, não tem acontecido.

"Um espaço dos cidadãos traficado para negócios"

O antigo presidente da União de Instituições Particulares de Solidariedade Social ainda está "estupefacto" com o que aconteceu no Bairro São João de Deus.

Como está o "seu" São João de Deus?

Está em demolição há sete anos. Foi anunciado para lá um projecto de reconversão e do que vimos até hoje...

Qual a sua expectativa?

Aqui não há expectativa. Em relação ao São João de Deus é uma estupefacção. Como é possível aquilo acontecer e não haver um movimento social? A cidade acha normal que se possam demolir 270 casas dizendo que se acabou com o tráfico. Que se acabou com o tráfico não é verdade. A gente vê-o lá ainda a acontecer. Lá acontece menos. Alguns têm lá [um ponto de tráfico] e noutro lado, têm duplicado. Admito que tirassem as pessoas que não deviam lá estar. Mas não havia aí tanta gente na cidade, idosos, que precisariam de uma casa? Agora, se uma cidade, depois de saber o que sabe, dá um voto a um autarca... É aqui que estamos. Há políticos que dizem que há só uma legitimidade, que é a do voto. Eu acho que não. Nós, IPSS, agimos por legitimidade ética, de consciência, de cidadania.

Neste momento há cinco blocos, dois já vazios. Toda a vossa intervenção naquela zona teve de ser alterada...

Na altura que se fizeram as casas, era o Centro Claretiano de Apoio à Infância, Juventude e Família. A fundação entrou para a intervenção social em 1998. Os nossos técnicos são patrulhadores de rua. Eles andam na rua. Portanto, não foi muito difícil. Tivemos de fazer uma reorientação.

Deduz-se que vê com maus olhos o projecto para o Bairro do Aleixo.

A minha observação é esta: habituei-me a entender a cidade como um território de cidadania e o que vejo é que a cidade hoje é um território para tráfico. Tráfico de negócios. É aqui, é em Lisboa, em todos os lados. Incomoda-me saber que as câmaras podem vender créditos imobiliários. Deve ser assim: 'Vou dar-lhe um crédito, mas agora não, porque há muito barulho. Deixe passar um tempo, depois aquele gajo cala-se, e você vai ter uma oportunidade." Não digo que as câmaras estejam a fazê-lo. Sei que há essa modalidade.

Onde há um bairro, deitando abaixo as casas, fica ali um terreno. Ou é para jardins ou é para outras coisas. Isso é uma questão que me mete confusão: um espaço que é dos cidadão poder ser traficado para negócios. No caso do São João de Deus, na altura, falámos com Rui Rio. Tenho um compromisso. Os terrenos que foram comprados pela instituição serão utilizados para fins sociais. O que vai acontecer? Sou um cidadão atento. Não quero fazer juízos de intenção. Verifiquei que se deitaram casas abaixo. No caso do Aleixo foi dito à cabeça que não se faria nada sem que as pessoas pudessem participar. Essa conversa também existiu no São João de Deus. Foi dito às pessoas que elas saíam de lá e, uma vez feitas as casas novas, teriam prioridade de alojamento. Isso continua a ser verdade. Como as casas novas ainda não foram feitas, e se calhar nunca vão ser, a promessa continua a ser válida.

Os terrenos do São João de Deus têm valores diferentes dos do Aleixo.

A minha questão é o princípio. O problema de expulsar os pobres para a periferia. Se formos a ver, muitos dos actos de vandalismo que estão a acontecer resultam de situações explosivas. A área metropolitana é um terreno minado pelo desemprego, pelo tráfico das drogas, pela desestabilização familiar que é muita, por um número imenso de pessoas detidas, de crianças que têm de estar com as mães na cadeia e depois não têm quem as acompanhe na inserção do bairro de onde saíram. É uma zona minada pela pobreza. Enquanto não conseguirmos desminar a cidade... Tudo o que seja criar emprego e reabilitar a cidade é bem-vindo. O Bairro Pio XII foi uma reconversão bem feita. Tiro o meu chapéu à Câmara do Porto. Tomáramos nós que o São João de Deus e outros fossem bem reconvertidos.

Todos os indicadores negativos estão mais carregados no distrito do Porto: sida, associada à toxicodependência, tuberculose, violência doméstica...

O Porto está no ranking desagradável. Há aqui situações que partem de uma reivindicação política. O poder central tem descurado o Porto. Têm faltado actores políticos e económicos que de facto defendam o país. Tempos o caso do aeroporto. E outros. E depois tudo tem a ver com tudo.