Teresa de Sousa, in Jornal Público
1. Pierre Hassner, o famoso académico francês das relações internacionais, abriu os trabalhos com um toque pessimista. As crises multiplicam-se, algumas podem ter consequências catastróficas (da implosão do Paquistão às alterações climáticas), todas exigem soluções urgentes. As estruturas de governo global são deficientes. O Ocidente ainda pensa que pode resolver tudo "dando um lugarzinho aos outros". Os "outros" também não são "particularmente multilateralistas", agora que são independentes e têm poder. Se há uma esperança, está na dimensão colossal dos desafios: "algo vai mesmo ter de mudar".
Álvaro Vasconcelos, director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia (IES), o anfitrião do encontro, haveria de concluir com uma nota um pouco mais optimista. Não há alternativa a um "multilateralismo efectivo" que convença as grandes potências, velhas e novas, a agir num quadro de instituições e de regras globais para resolver os problemas.
Entre o início dos trabalhos da conferência anual do IES e a sua conclusão, académicos, diplomatas e jornalistas vindos dos quatro cantos do mundo cruzaram opiniões e olhares sobre o que pode vir a ser uma nova ordem mundial que seja capaz de gerir as crises internacionais em cooperação e não em confronto. Em torno de uma questão central, a mesma que hoje estará à mesa dos líderes do G20, reunidos em Washington, com a ambição de lançar as bases para uma nova ordem económica: como integrar as potências emergentes?
Entre a relativa modéstia da China, que ainda se vê a si própria como "potência relutante", e a autoconfiança do Brasil, houve talvez duas conclusões possíveis e só aparentemente contraditórias. A primeira, que o Ocidente ainda não está preparado para partilhar o seu poder mundial. A segunda, que a liderança americana não tem alternativa à vista.
A conferência do IES realizou-se na véspera das eleições americanas, em Paris.
Pierre Hassner, confiante na vitória de Barack Obama, desejou-lhe que fosse capaz de elevar-se acima dos problemas internos que tem de resolver para estar à altura dos tremendos desafios que definem a encruzilhada em que o mundo se encontra. Álvaro Vasconcelos lembrou que a sua eleição pode constituir uma "extraordinária oportunidade" para o regresso do multilateralismo americano.
Mas estas são duas visões ocidentais. Interessa ver o que pensam os "outros".
2. Zhongping Feng, director do Instituto de Estudos Europeus de Pequim, começou por avisar que a China ainda precisa de tempo. Continua a ser um país em desenvolvimento. Estará na cimeira do G20 porque "a maioria dos seus dirigentes percebe que vivemos hoje num mundo cada vez mais interdependente". "A China precisa do Ocidente e o Ocidente precisa da China." Mas defendeu que as suas capacidades não devem ser sobrestimadas. A China, concluiu Feng, está pronta para desempenhar o papel de supporting power, ainda não está pronta para o de leading power.
O facto não a impede de ter um olhar crítico da visão ocidental. "Os Estados Unidos e a União Europeia pedem à China que partilhe o fardo das responsabilidades mundiais". No Darfur ou na Birmânia, na gestão da presente crise financeira ou no combate às alterações climáticas. "E a China reconhece que precisa de fazer mais." Mas o Ocidente "ainda não está preparado para partilhar o poder com as potências emergentes."
Apenas um exemplo. Quando, face à crise internacional, o FMI apela a Pequim e aos países do Golfo um contributo financeiro para aumentar os seus fundos, qual é a legitimidade de uma instituição onde a China dispõe de menos votos do que a Bélgica e a Holanda juntas?
A crítica seria comum a quase todos os oradores - do Brasil ou da Índia, da Rússia ou da África do Sul.
3. A questão seguinte foi a de saber se pode haver convergência entre a visão tendencialmente "multipolar" das potências emergentes, o multilateralismo europeu e a liderança americana.
Robert Hutchings, antigo embaixador americano e académico de Princeton, defendeu a oportunidade de uma "grande negociação global" para uma nova ordem mundial, liderada pela América. O que é que os Estados Unidos e o Ocidente podem ganhar com a cedência do poder aos outros e o que é que podem perder? Feitas as contas, o saldo seria globalmente positivo. "Os EUA têm de mostrar rapidamente que estão dispostos a isso, dando alguns sinais claros nesse sentido." Em relação à reforma do Conselho de Segurança da ONU ou das instituições de Bretton Woods (FMI e Banco Mundial), mas também com novos sinais de abertura da NATO em relação à Rússia (o que implicaria uma revisão da defesa antimíssil). Ou ainda na determinação em fechar rapidamente as negociações de Doha.
A oportunidade nasce da convicção de uma forte interdependência. Nada poderia ser pior para as grandes economias emergentes do que uma recessão prolongada nas economias desenvolvidas somada a uma provável tentação proteccionista. E quem é que está interessado num Irão nuclear? É essa interdependência que hoje impede uma ordem meramente multipolar com o regresso à "balança de poderes".
Mas há também diferentes visões sobre o que deve ser essa ordem mundial interdependente. A China continua a dar-se bem com o statu quo. A Índia mantém comportamento internacional hesitante e reactivo. Ambas valorizam a "soberania nacional" como um princípio sacrossanto. A Rússia insiste em "fazer músculo", alimentando a ilusão de que "poderá ainda vencer a segunda guerra fria". A Europa quer fazer do seu próprio exemplo de integração a defesa do "multilateralismo efectivo".
As mesmas palavras significam ainda coisas diferentes. "Para a Ásia, o multilateralismo significa contenção [dos problemas] através de uma diplomacia soft; para a Europa significa a sua resolução", resumiu Radha Kumar, da Universidade de Nova Delhi.
Regressemos a Hassner. O académico francês lembrou que o mundo se vê hoje confrontado com duas forças contraditórias igualmente fortes: a globalização e as identidades. Entre estas duas tendências, "os homens de boa vontade devem tentar pôr alguma racionalidade". A cimeira de hoje será um primeiro teste.