Isabel Arriaga e Cunha, Bruxelas, in Jornal Público
Os líderes do G20 discutem hoje nos Estados Unidos o futuro do capitalismo global. A ausência de Obama e o desacerto entre a UE e os EUA dificultam os consensos
Não será uma repetição da grande conferência de Bretton Woods que, em 1944, definiu as regras do sistema financeiro internacional, mas a cimeira que hoje junta em Washington os países mais ricos do Mundo e as grandes economias emergentes - o G20 - poderá vir a ter uma importância equivalente.
Os dois acontecimentos têm poucos pontos de comparação. Bretton Woods estendeu-se durante três semanas e precisou de mais de dois anos de preparação, enquanto o encontro de hoje está previsto há menos de um mês e não durará mais do que seis horas.
Ambos têm, no entanto, em comum um sentimento de urgência na definição das medidas necessárias para evitar a repetição de uma grave e sistémica crise financeira, que, no caso presente, promete atirar em 2009 todos os países ocidentais para uma recessão económica.
Nicolas Sarkozy, Presidente francês e actualmente da União Europeia (UE), que está na origem da realização da cimeira, foi obrigado a refrear a sua impaciência e aceitar que a reforma "profunda e estrutural" que pretende das regras do "capitalismo internacional" não poderá ser feita de um dia para o outro. Mas, depois de frisar que se recusam a participar numa cimeira de mundanidades ou limitada à análise das causas da crise, os europeus exigem que dos debates dos líderes - que arrancaram ontem ao jantar - saia pelo menos um plano de acção com as pistas das reformas a desenvolver, um método de trabalho e um calendário preciso para a sua concretização.
O mundo a mudar
"Será o início de um processo, de um trabalho insistente e difícil de peritos para uma regulação da economia de mercado", afirmou esta semana o ministro francês dos Estrangeiros, Bernard Kouchner, frisando que "ninguém pode imaginar que [da cimeira] saia um documento para mudar o estatuto do FMI ou coisas do género". O mundo terá hoje de "começar a mudar", avisou o ministro britânico das Finanças, Alistair Darling.
A UE, que estará representada pelos seus quatro maiores Estados pelo facto de serem membros do G8 - França, Alemanha, Reino Unido e Itália - a par da Espanha e Holanda a título de "convidados" da presidência francesa, exige, aliás, a realização de uma segunda cimeira dentro de 100 dias para concretizar as medidas que forem hoje definidas. A Rússia apoia.Nessa altura o novo presidente americano, Barack Obama, potencialmente mais sensível às teses dos europeus, já estará em funções, podendo assim empenhar a fundo o seu país na busca de soluções.
O facto de Obama não participar na cimeira de hoje - ver caixa - constitui precisamente o principal obstáculo a grandes avanços. O ainda Presidente, George W. Bush, não só está em fim de mandato como se opõe por princípio ao tipo de regulação dos mercados financeiros que os europeus gostariam de impor.
A UE, que não perde uma oportunidade para apontar a desregulação americana como a causa da crise, quer submeter todos os produtos financeiros, instituições e mercados financeiros a uma regulação "apropriada e proporcional", em paralelo com medidas como o reforço da vigilância das agências de notação de crédito ou a eliminação dos incentivos aos comportamentos de risco. No centro deste processo de regulação, os europeus gostariam de colocar o FMI.
Entre regulação e economia
Bush resiste, recusando qualquer tipo de supervisão centralizada - quando muito, poderá aceitar uma cooperação entre supervisores nacionais ou, eventualmente, a criação de "colégios de supervisores" das grandes instituições - e não quer conferir ao FMI mais do que um papel de avaliação de riscos e prevenção de crises.
As dificuldades de um acordo entre os Vinte são, por outro lado, ilustradas pela posição do Canadá, cujo primeiro-ministro, Stephen Harper, frisou ontem que a cimeira não tem que se ocupar de regulação financeira, mas sim da definição de um plano concertado para o relançamento da economia mundial.
Europeus e americanos estão, em contrapartida, de acordo sobre a necessidade de responder positivamente à reivindicação dos países emergentes no sentido de um reforço do seu peso no FMI e Banco Mundial, que pressupõe um aumento do seu apoio financeiro à economia mundial. Os europeus esperam, aliás, que a China e os países produtores de petróleo, que dispõem de gigantescas reservas monetárias, anunciem rapidamente a disponibilização de uma parte destes fundos para reforçar os 250 mil milhões de dólares actualmente à disposição do FMI, de modo a permitir-lhe socorrer as economias em dificuldades. O Japão deu o exemplo, ao anunciar na véspera da cimeira o empréstimo de perto de 100 mil milhões de dólares ao FMI, equivalentes a 10 por cento das suas reservas. Não é claro se os outros países "folgados" poderão fazer anúncios do mesmo tipo durante a cimeira de hoje.
O reequilíbrio do peso dos países membros no FMI promete, no entanto, relançar a questão da concentração dos direitos de voto dos países europeus num assento único a assumir pela UE, um debate que os Vinte e Sete não estão por agora nem de perto nem de longe dispostos a assumir.